Entre a ciência e a alma
Em 2025, psiquiatras são tão comuns quanto dentistas ou encanadores e, no entanto, continuam carregando o prestígio silencioso de quem, no fundo, mexe com um território que ninguém sabe mapear direito. Se antes a consulta era um ato solene, quase clandestino, hoje é um compromisso na agenda ao lado do pilates e do supermercado.

A pandemia da Covid-19 deixou seus destroços: ansiedade, depressão, burnout. A psiquiatria não é mais apenas uma especialidade médica, mas uma infraestrutura de sobrevivência emocional. O consultório, seja físico ou virtual, tornou-se uma sala de manutenção: você chega com as peças soltas e sai com o suficiente para seguir funcionando. Ao menos até a próxima parada.
E há uma estranha ironia nisso: nunca tivemos tanto acesso à informação sobre saúde mental, nunca usamos tanto a palavra autocuidado, mas nunca estivemos tão dependentes de um especialista para nos lembrar que somos, sim, limitados — e que precisamos, sim, pedir ajuda para encontrar uma maneira de conviver com o que não pode ser mudado. A psiquiatria deixou de ser o “último recurso” para se tornar o “primeiro atendimento”. E isso não ocorre porque estamos mais frágeis, mas porque reconhecemos que muitas vezes não é possível sustentar sozinho o peso de existir.

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) foi fundada em 13 de julho de 1966. Cinquenta anos depois, a ABP instituiu oficialmente a data como o Dia do Psiquiatra, com a intenção de dar visibilidade à especialidade no Brasil. A psiquiatria nasceu no início do século XIX, quando, em 1808, o médico alemão Johann Christian Reil cunhou o termo, e médicos como Philippe Pinel ousaram defender cuidados mais humanos.
No Brasil, os primeiros textos e instituições voltados à saúde mental surgiram ainda no século XIX, e nomes como Juliano Moreira, no início do século XX, ajudaram a transformar o tratamento dos transtornos mentais em algo que se aproximasse mais de um cuidado do que de um confinamento. Décadas depois, Nise da Silveira subverteria de vez a lógica punitiva dos manicômios, introduzindo a arte, a liberdade criativa e o afeto como instrumentos terapêuticos — um gesto que parecia poético, mas que se provou profundamente científico. É uma história recente, mas carregada de rupturas e mudanças de paradigma.

O psiquiatra contemporâneo é, portanto, meio clínico, meio cartógrafo: ele olha para os relevos da mente, mas também para as rotas de fuga que inventamos. É possível que, no futuro, seja lembrado como o profissional que tornou aceitável pedir ajuda, e que fez da fragilidade um assunto tão legítimo quanto falar de dores no corpo.
Com essa sensibilidade para a escuta e a complexidade humana em mente, combinei com a Aquarius de escrever um texto para o Dia do Psiquiatra, fazendo um paralelo com o belíssimo documentário Oliver Sacks: Sua Própria Vida. Ao assistir ao filme, não esperava encontrar um relato tão vivo e arrebatador: a história de um homem que passou por percalços e enfrentamentos duros e, no caminho, transformou sua própria vida em uma lição luminosa para todos nós. São noventa minutos imperdíveis, que me deixaram, no fim, com a sensação de ter ganhado um presente.
Oliver Sacks (1933–2015) foi um neurologista, pesquisador e escritor britânico que reinventou a forma de falar sobre medicina. Formado em Oxford e radicado nos Estados Unidos desde os anos 1960, Sacks transformou relatos clínicos em narrativas literárias que uniam ciência e sensibilidade. É dele o livro que deu origem ao filme Tempo de Despertar (1990), com Robert De Niro e Robin Williams. Seus livros apresentam ao mundo pacientes com distúrbios neurológicos raros, mostrando não só as doenças, mas quem de fato eram aquelas pessoas.

Oliver convidava os pacientes a olharem para si. Usando uma metodologia que não era valorizada por seus pares, ele observava, avaliava e interagia. O objetivo de seus atendimentos era passar horas com o paciente tentando compor uma história que pudesse ajudá-los a deixar de serem objetos esquecidos num canto para serem sujeitos da própria vida. Essa abordagem pioneira — que valorizava a escuta, o respeito e a singularidade — consolidou sua reputação internacional e é hoje um pilar tanto da neurologia quanto da psiquiatria contemporâneas.
E foram justamente suas vulnerabilidades pessoais — a timidez, a rejeição e a angústia com a homossexualidade — que o ajudaram a se moldar como um profissional inovador. Porque nenhum médico, seja psiquiatra ou neurologista, entende de verdade a experiência humana só com o que aprende nos livros. Existem verdades que só aparecem quando se mergulha na vida das pessoas e se acompanha, com paciência e atenção, o que o tempo faz emergir.

Neste texto e para ir além:

Filme: Oliver Sacks: Sua Própria Vida, na aquarius

Filme: Tempo de Despertar, no Prime Video

Livro: O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, de Oliver Sacks

Cristhiane Ruiz é editora, psicóloga e nunca teve medo de uma consulta psiquiátrica, mas sabe que uma boa escuta é tão essencial quanto qualquer remédio.
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