A dicotomia da fé, o ódio do não entendimento, a salvação pela arte, o maior festival religioso do planeta e uma religião chamada amizade.
Velário. Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida.
Tem alguma coisa sobre a fé que soa incoerente. Parece que, justamente no momento em que mais precisamos acreditar, é quando nos sentimos mais descrentes. A sensação de injustiça, o não entendimento do porquê das coisas, o ódio puro por não conseguir enxergar, a falta de racionalidade. Tem umas feridas que a vida abre na gente que são muito duras e tem a capacidade de tirar um pouco a saturação dos dias. É como se a rotina e o próprio viver perdesse um pouco a cor e as noites fossem além de mais escuras, mais longas também. Diante deste bruto esmaecimento da vida me peguei pensando como pode ter muita gente que só enxerga o cinza. E como, diante da dor, é a crença em algo maior que talvez seja uma corda de salvação para não afundarmos de vez. Daí a dicotomia: é preciso ter fé para não deixar de ter fé. Brabo demais.
Sinos. Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida.
Eu nunca fui uma pessoa religiosa, mas desde pequena sempre acreditei em tudo. Sou uma eclética da fé. Em todos os deuses e deusas, em todas as religiões, no papo direto com a divindade natureza, no pensamento positivo para ganhar o sorteio da prenda da escola – nunca deu certo – nas simpatias ensinadas em revistas adolescentes dos anos 90 e claro, em toda e qualquer superstição, afinal eu torço pelo Botafogo de Futebol e Regatas.
Quando estou tomada pela decepção, pela raiva e desacreditada de que existe algo que rege nossa existência, eu recorro à arte porque acredito que há uma subjetividade que o artista coloca ao executar e que nós temos ao receber que é única em cada lado, mas ao mesmo tempo é via dupla. Acho isso mágico. Como diz Rosa Maria Montero, uma escritora que admiro: “Nós, humanos, nos defendemos da dor sem sentido enfeitando-a com a sensatez da beleza. Esmagamos carvão com as próprias mãos e às vezes conseguimos fazer que pareçam diamantes.” Arte para mim é isso.
Doce ilusão, de Luiz Zerbini.
Outra forma de retornar para minha base é ouvir o compartilhamento de experiências de fé de outras pessoas. Todo mundo tem algo a dividir, há sempre uma história de crença para se contar. Eu acredito que quem tem a fé inabalável é alguém que tem a visão do caminho de onde quer chegar. É a estrada amarela do mágico de Oz iluminada para sempre. Pode tudo acontecer, tempestade, obra, destruição, nevoeiro. Parece que quem crê sempre consegue enxergar os tijolos. Observar o acreditar do outro faz com que eu nutra algo em mim mesmo que o cenário esteja árido.
Kumbh Mela. Daniel Berehulak/Getty Images
Falando sobre a fé dos outros, assisti a um documentário na aquarius sobre o maior festival religioso do mundo que acontece de 12 em 12 anos na Índia e se chama Kumbh Mela. São 55 dias, mais de 60 quilômetros quadrados ocupados por 13 seitas diferentes, totalizando cerca de 100 milhões de pessoas mergulhando no que eles chamam de Sagam: a confluência dos rios Ganges,Yamuna e do invisível Sarasvati. Segundo a lenda, para conseguirem o néctar da imortalidade, os deuses se juntaram aos demônios para agitar o oceano juntos e concordaram em dividir igualmente as joias que surgiriam. Por fim, um pote de néctar, o Kumbh, emergiu da agitação. Houve uma luta feroz entre os deuses e os demônios para possuir o pote. Durante essa batalha, gotas de néctar caíram em 4 lugares na terra. Essas gotas de néctar se manifestam a cada 12 anos como o Kumbh Mela. Os alinhamentos planetários decidem onde e quando ele será realizado. O evento é a única oportunidade de mergulhar nesse néctar para desfrutar da luz espiritual da sabedoria divina. O último Kumbh Mela foi realizado em 2013. Ou seja, em 2025 teremos novas imagens de um encontro que parece absurdo para quem não acredita em algo além do que vivemos na Terra.
O festival, classificado pela Unesco em 2017 como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, traz números absurdos também em quesitos nada religiosos. Só de desaparecidos durante o Kumbh Mela o número é de 135.000. Você leu direito. Cento e trinta e cinco mil pessoas, principalmente crianças e idosos. Alguns recortes da vida trazem outra dimensão pro dia a dia e os números passam a significar coisas diferentes. Você já visitou um hospital pediátrico oncológico? Eu visitei um recentemente. Tinha um andar inteiro de crianças com leucemia. São 15 quartos. Quinze crianças de até cinco anos com câncer. O que parece mais chocante? 135.000 pessoas desaparecidas no Kumbh Mela ou 15 crianças com câncer? Como números tão díspares pesam de formas tão diferentes? Como calcular o peso das coisas? Alguma métrica dá conta disso?
Land of Oz. Johnny Joo.
A visão que tenho de mim mesma em momentos difíceis é a de que eu meemburaco. Tem um quê de recolhimento escolhido, mas tem muito de parecer que aquele espaço de terra precisa ser preenchido comigo. Foi cavado para mim. Eu fico vendo a vida passar olhando para o alto, dividindo minha descrença com as amigas que insistem em estender a mão para dentro. Poucas coisas são mais comoventes do que não se sentir sozinha dentro de um cenário que parece que o nosso sofrimento é o centro. Uma dessas amigas, quando eu disse que estava incrédula diante de acontecimentos recentes, em nenhum momento devolveu me pedindo para crer. Respondeu “Então deixa que eu rezo daqui.”
Talvez seja mesmo mais fácil ver as estrelas nas noites mais escuras. Ou talvez a gente só note o poder e o brilho delas quando não há mais nada em volta. Existem tipos de fé, crença e energia que estão além da relação divina celestial. O vínculo do humano, o amor pleno vindo de desconhecidos, chocolates enviados sábado de manhã, o momento presente em despedidas, ligações carinhosas inesperadas dão o tom do real significado do que é ter amigos. Tem dor, tem choro e descrença, mas tem palavras e abraços. Abraços que salvam, reestabelecem algumas cores e fazem com que entre alguma luz naquele embaçado da vista. Nesses momentos específicos alguma coisa bem mundana, que tem a ver com seres humanos que estão vivendo aqui nesse lugar junto conosco, nos religa com o que é chamado defé. E a gente percebe que às vezes viver na iminência de perder pode fazer a gente ganhar demais.
Heloiza Daou (@helodaou) é movida à palavra, diretora de marketing na aquarius e Downtown Filmes. Obsessiva por boas histórias: dos livros (sempre), dos filmes e da vida.
A aquarius é uma plataforma de streaming com uma curadoria cuidadosa que oferece filmes, séries e documentários premiados sobre yoga, meditação, espiritualidade, sustentabilidade, meio ambiente, cultura, arte, ciência e muito mais. O foco da aquarius é no cuidado e bem-estar, na conexão e transformação a partir de filmes e conteúdos que inspiram e ajudam a viver.
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