Somos autores ou personagens de nossas histórias?

Nesta edição: O fingimento nosso de cada dia, a insatisfação até quando tudo dá certo e a missão individual de reduzir o sofrimento no planeta.

Analise friamente: você vive agora um período de satisfação? Ou seria justamente o oposto, mas com disfarce de aceitação? Imagine um ator que não tem a possibilidade de recusar um papel e se vê obrigado a interpretá-lo, a usar aquelas vestes, aquela maquiagem, a falar daquele jeito, tudo como manda o figurino. Consegue se enxergar nessa pessoa? Já que a vida imita a arte — ou seria o contrário? —, e se tudo o que vivemos for uma ficção?

Para o caso de nunca ter pensado a respeito, vou te propor aqui um exercício de percepção da realidade: observe o que acontece ao seu redor, as conquistas, as decepções, as pessoas, os ambientes, e veja como às vezes a rotina parece um roteiro de cinema, um capítulo de novela, um episódio de série. Faz sentido?

O estranho é que alguns fatos pelos quais passamos se assemelham a esquetes de programas mal escritos, com situações tão absurdas que seriam exageradas e inverossímeis até mesmo para uma produção de TV. Quando me pego refletindo sobre o assunto, normalmente bate aquela insatisfação chatinha, ainda que tudo esteja caminhando como o esperado, seguindo o que a cartilha manda. Nem sempre isso basta para estarmos bem.

A tal comparação com o mundo ficcional não se dá por um desejo reprimido de atuar, muito pelo contrário. Nesses momentos de questionamento da realidade, minha principal motivação é justamente deixar de ser um personagem. Uma tentativa quase sempre frustrada de me esquivar de estereótipos que vários dos meus colegas de cena preferem defender. Afinal, é bem mais cômodo aceitar o papel e seguir o que diz o script.

Se você já assistiu ao filme O Show de Truman – O Show da Vida, protagonizado por Jim Carrey, deve se lembrar das aventuras daquele homem que vivia sob os olhares atentos da audiência televisiva, sem nunca ter percebido que sua rotina era um reality show. Tudo acontecia em uma gigantesca cidade cenográfica da qual jamais saiu, até que começou a desconfiar: será que sou só a peça de um jogo em uma realidade manipulada?

Assim como Truman, todos nós, de certa maneira, vivemos como marionetes conduzidas por padrões. Acordar, tomar banho, engolir o café, correr para o trabalho, resolver burocracias, voltar para casa, jantar, dormir. Quantas vezes você já se perguntou: “será que botei o lixo para fora? Não consigo me lembrar!”. Temos agido tão no piloto automático que até as relações familiares se tornaram robotizadas. O “boa noite, meu amor, como foi seu dia?” é sempre sincero ou está no roteiro com a indicação “voz mansa e esboçando leve sorriso”?

A angústia toma conta ao nos atentarmos para o fato de que não estamos sendo autores de nossas próprias histórias. No documentário O Despertar da Mente: Conhece-te a Ti Mesmo, que já pode ser acompanhado na aquarius, especialistas abordam profundamente essa questão. A ideia é encontrarmos o nosso verdadeiro Eu, escondido por trás de tantas camadas de figurinos e máscaras invisíveis que vamos acumulando ao longo dos anos. É nos despirmos de preconceitos, conceitos, conselhos, mentiras que aceitamos como verdades. Nossa essência está oprimida por tantas barreiras, que só quem as quebra é capaz de acessá-la. Essa é a libertação plena.

No longa, o autor e palestrante norte-americano Neale Donald Walsch comenta que, desde cedo, aprendeu a fórmula que precisava seguir para viver: ter uma namorada, comprar um carro, conseguir um emprego, conquistar uma casa, formar família. Pode-se dizer que cumpriu bem seu papel, mas até que ponto isso foi suficiente para fazê-lo feliz? Só aos 53 anos, o escritor notou que tudo tinha sido em vão, já que aquilo não passava de um formato pré-estabelecido que lhe fora transmitido como sendo “o normal”. E quem criou esse molde de pessoa bem-sucedida? Por que ainda achamos que precisamos nos adequar àquilo como se fôssemos velas saindo de fôrmas de silicone?

“O personagem limitado tende a se agarrar ao que deseja. Opera como um acumulado de padrões condicionados que implora por seus desejos ou afasta as coisas indesejadas.”

Isso é o que afirma Dan Schmidt, diretor do doc, e é a partir desse ciclo sem fim que todo o sofrimento do mundo se cria, segundo sua percepção. Se seguirmos contra a corrente, portanto, estamos em batalhas individuais pela paz mundial, olha a responsabilidade!

O dito “despertar” seria, na realidade, uma maneira de trazer à luz a paz, a felicidade, a plenitude. Esses sentimentos que parecem conquistas distantes já estão conosco, mas ofuscados pelas vivências. Seguem cobertos por indumentárias que, em sua maioria, nem fomos nós que escolhemos. Tampouco foi um diretor sentado em uma cadeira com um megafone em mãos, mas um comportamento geral, assim como Gonzaguinha intitulou uma de suas brilhantes composições. Afinal, como ironiza a letra, estamos aqui em busca de satisfação ou de um mero diploma de bem-comportado?

No final das contas, não precisamos seguir padrões, mas fomos condicionados e nos acostumamos a eles. Parece mais fácil atuar de acordo com o que os espectadores querem de nós do que desfrutar da liberdade e escrever nosso próprio destino. Sim, somos seres essencialmente livres. Só é uma pena que ainda não saibamos disso.


Neste texto e para ir além:


Pedro Castro Nunes

Pedro Castro Nunes é redator e produtor audiovisual, apaixonado por televisão, rádio e pela escrita. Como bom observador, escuta mais do que fala, lê mais do que escreve e é impactado mais do que impacta — às vezes, contudo, inverte o jogo.

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