Ganhei meu primeiro celular no natal de 2005. Uma edição especial Sandy e Júnior lançada pela Siemens. Era laranja e vinha com uma capa extra azul marinho para trocar a qualquer momento — no auge dos meus 10 anos, aquilo era incrível. Não tinha acesso a internet a todo momento, não tinha “Candy crush”, não tinha nem cor. Era se contentar com preto e branco, no meu caso, preto e laranja (até a luz de iluminação da tela era laranja). Como era bom! Dia sim, dia não me pego pensando em como aquela tecnologia era libertadora.

Vinte anos depois, o celular que era só um facilitador de comunicação tornou-se parte obrigatória da vida. Para mim, quando ele não está colado comigo é como se faltasse alguma coisa. Estou tão acostumada a sentir ele vibrar que diversas vezes isso acontece em forma de ilusão, ele não está vibrando, mas posso jurar que sim.
Prometo que aqui acabam os clichês sobre tecnologia. Isso não é um manifesto contra os gadgets. É um desabafo de uma jovem mulher apavorada (no bom e no mau sentido) com o que a tecnologia é capaz de fazer.
A tecnologia e as emoções humanas
As discussões sobre Inteligência Artificial generativa estão a cada dia mais intensas, argumentos contra, argumentos a favor. Uma das alegações mais fortes no lado da defesa parte do princípio de que essas tecnologias não são capazes de sentir, não tem emoções ou sensibilidade para criar, isso só pode vir de um humano. Eu acreditava 100% nisso, agora só 60% de mim confia nessa teoria. Os outros 40% se perderam depois de assistir a dois filmes da Aquarius: “Imortalidade Artificial” e “Não sinto nada”, este último sendo lançado hoje na plataforma. Dirigido e protagonizado pelo norte americano David Borenstein, o longa se propõe a investigar como a tecnologia “hackeia” nossas emoções.

Tudo começa como algo muito pessoal para David quando ele percebe que não está mais “sentindo nada”, vive como se suas emoções estivessem anestesiadas e isso passa a incomodar. No seu processo de investigação, ele se depara não só com o fato de que mais pessoas se sentem assim, mas também com estudos que mostram como os conteúdos nas redes sociais são capazes de manipular, propositalmente ou não, as nossas emoções. Nessa hora confesso que me bateu uma angústia: “Como assim as minhas emoções não pertencem a mim? Será que estou realmente sentindo? Será que não tenho a total autonomia das minhas próprias emoções?” Dentro do universo da tecnologia, sim e não.
David encontra com um homem que gosta de causar raiva em outras pessoas por meio de comentários maldosos e misóginos. Vai até a China para entender como funciona a indústria de streamers que vivem de doações em dinheiro de espectadores de suas lives e instigam sentimentos como amor. Um dos entrevistados chega a dizer que o futuro dos relacionamentos amorosos é virtual.

O diretor viaja para a Macedônia e se depara com pessoas que ficaram muito ricas inventando fake news e explorando o medo. Segue assim e destrincha a alegria, o constrangimento, o orgulho, o desespero e a exaustão.
Dedica um tempo do filme ao TikTok e como os adolescentes de hoje, que já nasceram com as redes sociais e sendo bombardeados por conteúdos, precisam ser vigiados de perto. Assunto que rendeu muitas discussões nos últimos meses depois de a Netflix lançar a genial série “Adolescência”. Ao longo de quatro episódios, vemos um menino de 13 anos sem restrições de acesso à internet matar uma colega de turma. As redes sociais podem moldar a personalidade de uma pessoa em formação? Podem provocar tanta raiva, tristeza, angústia, ansiedade, desespero? Se provoca em mim, imagina num adolescente.

Tecnologia humanóide
David vai além e chega em empresas de tecnologia que mapeiam as emoções e criam, por exemplo, câmeras de vigilância que conseguem ler pelas expressões faciais o que estamos sentindo. É quando ele se dá conta de que “se nossas expressões faciais podem ser reduzidas em números, então a fórmula certa pode nos fazer sentir qualquer coisa. O mundo funciona manipulando emoções”.
Assustador. Fica pior. Até aqui são humanos manipulando humanos através das máquinas. Aí que entra “Imortalidade Artificial”. No documentário vemos especialistas trabalhando para criar avatares realistas e com personalidade. Cientistas — liderados pelo brasileiro Alysson Muotri — já estão descobrindo como criar células cerebrais em laboratório e vem tentando torná-las funcionais.
Além disso, alguns dos estudos mostrados no longa defendem a fusão das mentes com a máquina como se os humanos tivessem uma espécie de arquivo mental possível de ser transferido. “Alma é dado e dado é transferível”, diz um dos entrevistados. Será? Gosto de achar que não.

Como nos manter humanos?
Sempre fui uma pessoa que sente muito. Transbordo em emoção. Alguns chamam de drama, outros atribuem ao fato de eu ser pisciana, tem gente que acha que é desequilíbrio. Como que pode chorar e em um intervalo de 10 minutos estar sorrindo? Eu chamo de humanidade, de vida. E eu quero continuar vivendo, chorando, rindo, sentindo tédio, vergonha… Quero todos os meus divertidamente no controle do meu cérebro e não os algoritmos.
Mesmo que pareça impossível ignorá-los, dá para fazer isso vivendo o mundo real. Esse é o conselho que o especialista Morten Fenger dá para o diretor de “Não sinto nada”. Viva o mundo real. Saia de casa, desligue o celular, interaja cara a cara com as pessoas. Parece simplório, mas não é. É um exercício diário sair de casa para tarefas básicas, afinal mercado, farmácia, restaurantes, tudo vem até você.
Tenho tentado respirar fundo quando noto que meus dedos não param de scrollar a tela do celular. Volto para a consciência do meu corpo, das minhas sensações. Tomo o presente para mim e sinto por mim. Como bem dizia Nietzsche: “O destino dos seres humanos é feito de momentos felizes, e não de épocas felizes”. Viva o momento.

Neste texto e para ir além:

Filme: Imortalidade Artificial, na aquarius

Série: Adolescência, na Netflix

Livro: 100 minutos para entender Nietzsche, Astral Cultural