
Keyboard Fantasies: The Beverly Glenn-Copeland Story é um documentário dirigido por Posy Dixon, sobre o sujeito que nomeia o filme: um artista negro transgênero e pioneiro da música eletrônica. Copeland é ainda hoje um ilustre desconhecido do grande público, ainda que reverenciado por alguns iniciados. Sua falta de notoriedade é meio que um espanto, dado o tamanho do talento e pioneirismo do sujeito, cá pra nós. Mas vem comigo, me acompanha.
Copeland resiste às categorias e gêneros pré-definidos. Segundo o próprio, seu processo criativo sempre funcionou mais ou menos como um rádio — ele às vezes simplesmente capta aleatoriamente alguma frequência, e daí se encarrega meramente de reproduzi-la. No início do filme, menciona um email que recebeu em 2015, de um dono de uma loja de discos no Japão, que havia demonstrado interesse em comprar qualquer cópia de Keyboard Fantasies, o álbum experimental que havia lançado, de modo independente e caseiro, no ano de 1986.
Keyboard Fantasies é um disco com uma sonoridade diferente de qualquer coisa que existia na época e mesmo na cena atual: mistura de new age, folk, ambient, jazz e música eletrônica. Tudo salpicado pela voz de tenor contralto de Glenn-Copeland. Na época de seu lançamento, circularam 200 unidades de fitas cassetes, das quais apenas 50 foram vendidas.

Uma ideia na cabeça e um computador Atari, uma bateria eletrônica Roland e um sintetizador Yamaha DX7 nas mãos
Copeland nasceu nos EUA em uma família de classe média da Filadélfia. Sua infância e adolescência foram atípicas. Cresceu apartado do resto da sociedade, criado em uma comunidade quaker, hermeticamente fechada às questões do mundo externo, e quase indiferente ao contexto da época: as lutas pelos direitos civis e o estado de convulsão social e político constante dos EUA.
Foi estudar música clássica em uma universidade de prestígio canadense, na qual era um dos poucos alunos negros. Ainda não havia transicionado, mas começou a se relacionar abertamente com outra mulher, numa época em que havia legislação declarando ilegal qualquer relação homoafetiva em território nacional.
Seus pais tampouco aceitaram sua orientação sexual e tentaram submetê-lo a uma terapia à base de eletrochoques: uma das muitas violências cometidas contra a população LGBTQIA + ao longo da história. Copeland largou a faculdade e decidiu se dedicar integralmente à carreira musical. “Vendi meu oboé e comprei uma guitarra”, recorda.
Depois disso, lançou discos que fracassaram comercialmente, até que, no início da década de 1980, com o auxílio luxuoso de um computador Atari, uma bateria eletrônica Roland e um sintetizador Yamaha DX7, produziu enfim Keyboard Fantasies — um álbum que também fracassou comercialmente, é bem verdade, mas a exemplo de outras manifestações artísticas de vanguarda, foi compreendido algumas décadas após seu lançamento, por outra geração.

O longa foca no impacto cultural de seu disco mais cultuado, mas deixa de fora informações importantes que ajudariam a compor melhor o personagem. Sua fé budista é colocada à margem da discussão, embora seja razoável supor que ela exerça papel central na sua sensibilidade artística e visão de mundo. Também nada é dito sobre os anos em que atuou como roteirista do programa infantil “Vila Sésamo”: uma alternativa profissional inusitada, mas interessante, diante de um fracasso comercial na indústria musical que persistiria ao longo de muitos anos.
As letras de Keyboard Fantasies têm com frequência uma vibe pastoral e idílica. É apertar o play e quase se sente uma brisa outonal no rosto e nos cabelos. Em suas composições, o artista reflete sobre um pôr do sol, a brisa de outono e a natureza de um modo geral, sempre como manifestações da graça divina e de algo transcendente. Nesse sentido, ele não está tão distante de uma artista como Midori Takada, a pioneira da ambient music japonesa. Não é de se estranhar que a sua carreira tenha ganhado novo fôlego com o interesse do público japonês. Foi somente com a ligação daquele “senhor dono de uma loja de discos” que seu disco “difícil e experimental” conseguiu ser relançado no ano seguinte, em 2016, pela Toronto Invisible City Editions e, outra vez, pela gravadora Séance Centre, em 2017.

Contra o cinismo
No mesmo ano Copeland foi convidado a proferir uma palestra na Red Bull Music Academy. Também entrou em turnê, no Canadá e na Europa, pela primeira vez em mais de duas décadas, já com 74 anos: a idade em que muitos sambistas entraram em estúdio para gravar seus primeiros discos. Mas divago.
Ao longo do filme, observamos muitos jovens interagirem com Copeland, a quem admiram por motivos variados. Um deles o agradece emocionado, e conta como quando Keyboard o ajudou a superar um momento de vida difícil.
Outros o escutam com atenção e reverência, devido à sua vivência como um idoso queer. Sua banda de apoio, a Indigo Rising, que o acompanha durante a turnê documentada no filme, é toda composta por millennials, que o tratam com a admiração de um herói de guerra — até porque, no fim, é o que ele é de fato.

Aliás, no conflito intergeracional permanente em que vivemos, no qual boomers criticam millennials, que, por sua vez, atacam a galera Gen Z, Copeland e sua arte existem como uma espécie de ponte de conciliação, um bálsamo de harmonia e amor entre todos. Num mundo mergulhado até o último fio de cabelo em cinismo e ironia, não é pouca coisa e, com certeza, já é um grande legado.
Neste texto e para ir além:

Para ver: Keyboards Fantasies já estreou na aquarius

Para ver: “Procurando Sugar Man”, filme de 2012 dirigido por Malik Bendjelloul. Lindo estudo sobre o antagonismo arte x mercado, a partir da trajetória do músico Sixto Rodriguez.

Para ouvir: “Kankyō Ongaku: Japanese Ambient, Environmental & New Age Music 1980-1990”, uma excelente coletânea de música ambient e avant-garde japonesa, feita pelo selo Light in the Attic, que tem um baita catálogo e curadoria. Escutando esse disco com atenção, fica mais claro o porquê da piração japonesa com o som de Glenn-Copeland.