Monge com uma câmera na mão e Birkenstock nos pés

Nesta edição: A vida nada óbvia de Nicholas Vreeland

Ao fotografar as árvores do Central Park, Nova Iorque, Nicholas Vreeland conjectura: não é a árvore que se mostra, revelando uma beleza intrínseca ou uma essência que o fotógrafo é capaz de capturar. Vreeland sabe que o que faz uma bela imagem é a relação e a harmonia entre os elementos da fotografia. Isto é, sua composição. Este arranjo é o trabalho do fotógrafo. Existem inúmeras pensatas sobre a fotografia. Raras, porém, são aquelas  enunciadas do ponto de vista de um monge. A história de Nicky não é trivial. Nascido em Genebra, morou em alguns países até se estabelecer em Nova Iorque com sua família. O pai era diplomata e sua avó, ninguém menos que Diana Vreeland, a editora-chefe da revista Vogue em seus anos mais glamourosos. Entre as fotografias de infância, Nicky aparece clicado por Richard Avedon ou montado em um cavalo de Jackie Onassis, dado de presente pelo rei do Marrocos. Verões passados na Itália ou no sul da França. Uma vida de fartos privilégios e acessos aos círculos mais exclusivos e invejados. Nada disso, porém, parecia deixá-lo satisfeito.

O filme, que revela como um dândi se tornou um monge – ou como um monge já foi um dândi – se esforça em delinear uma personalidade peculiar, mas não escapa de reiterar certos vícios do vida ocidental. Uma boa história, porém, se faz nos detalhes. Como uma composição.

Depois de ter vestido as roupas e os sapatos mais elegantes, namorado mulheres deslumbrantes, trabalhado como assistente de fotógrafos do calibre de Richard Avedon e Irving Penn, o globetrotter descobre a meditação transcendental numa matéria de revista. Em Nova Iorque, busca um mestre para guiá-lo espiritualmente.

Durante sua ascensão profissional, quando colabora com revistas conhecidas mundialmente, é surpreendido por dois golpes do acaso que definirão sua vida dali pra frente. Vreeland decide deixar tudo para trás e investe em sua formação com Khyongla Rinpoche, um ex-monge exilado nos Estados Unidos após a invasão chinesa do Tibete. Quando a mãe de Nicky morre, ele vai mais longe: com o apoio de seu mestre e de Dalai Lama, muda-se para um importante mosteiro de refugiados tibetanos na Índia, o Rato Dratsang.

Nicky é um monge com uma câmera na mão e Birkenstock nos pés. O filme, narrado em primeira pessoa pelo asceta ocidental, consegue diferenciar seu protagonista de outros seguidores de práticas espirituais como os retratados em Wild wild country e os iogues fanáticos de Bikram: Yogi, guru, predador, por exemplo. Vreeland é inteligente, moderado e parece verdadeiramente comprometido com seu caminho espiritual. Mas, mais interessante que sua quase santidade, são suas inquietações. Confessa que, de toda a abdicação exigida, o que mais lhe faz falta são as mulheres. Em um momento espirituoso, o filho de Avedon, John, comenta que Vreeland doou todos os seus finíssimos sapatos, que lustrava com afinco, mas dedica o mesmo cuidado às suas sandálias Birkenstock, impecáveis. “Elas duram mais”, retruca Nicky. Sobre a prática fotográfica, que retoma depois de um longo período com o objetivo de angariar fundos para o mosteiro, se pergunta se o seu interesse na fotografia é uma “preocupação virtuosa”.

Ao chegar em Rato Dratsang, o jovem monge percebe que ninguém usava relógio de pulso e, por isso, doa um relógio de parede para o mosteiro. Nicky precisa marcar as horas.

O personagem, portanto, parece escorregar com suavidade entre pequenos hábitos de seu antigo modo de viver e os novos modos de monge. Tem como amigo Richard Gere, também budista, e é próximo a Dalai Lama, o principal líder espiritual tibetano. Quando precisa, Vreeland sabe se cercar das pessoas certas.

Torna-se abade do mosteiro, isto é, o responsável pelas decisões finais e pelas políticas do convívio e da organização de Rato Dratsang. Dalai Lama o considera uma espécie de mensageiro para o Ocidente. Nicholas Vreeland divide-se entre o sul da Índia e Nova Iorque, onde atua como intérprete de seu mestre, Rinpoche.

Com forte influência de Irving Penn, os retratos feitos pelo monge carregam senso estético apurado. As imagens evidenciam um rigor que encontra um paralelo – a busca pela perfeição – com a devoção e a abstinência. Confessa que a fotografia é como um vício. O prazer que sente o leva a um sentimento de culpa. Para o desaparecimento do “eu”, sagrado propósito budista, o orgulho precisa ser anulado. Fotografar parece incompatível com os votos religiosos. Apesar de suspeitá-lo, Nicky não aposenta mais a câmera.

O documentário, embora conduzido com notória aderência e simpatia por seu personagem principal, consegue deixar o espectador inquieto com esta figura que seria paradoxal, não fosse ele tão humano e inscrito em sua época.


Neste texto e para ir além:


LAURA LIUZZI

LAURA LIUZZI é poeta, pesquisadora e videomaker. Trabalhou como assistente de direção do documentarista Eduardo Coutinho nos filmes Um Dia na VidaAs Canções e Últimas Conversas. Também colaborou com Rodrigo Siqueira em Orestes e com Marianna Brennand em Manas. Publicou “Calcanhar” (7Letras, 2010), “Desalinho” (Cosac Naify, 2014), “Coisas” (Megamini/7Letras, 2016), “El espejo no cuenta secretos” (Ediciones Vestigio, 2020) na Colômbia e “Poema do desaparecimento (Círculo de poemas, 2024).

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