MEDITAR PARA VOLTAR A SER HUMANO

Nesta edição: o resgate da felicidade a partir de práticas simples, a importância de olhar para dentro com atenção, e como estar mais presente no presente pode transformar o modo como encaramos as pressões do cotidiano.

Foto: Julia Pavin

Nos últimos anos, especialmente após a pandemia, muitas pessoas começaram a se perguntar o que significa realmente ser feliz. O documentário Ser feliz por nenhum motivo lembra que a felicidade pode nascer menos do que acontece fora e mais de como habitamos o nosso próprio corpo e a nossa consciência. Esse retorno para dentro é justamente o território da meditação.

Mindfulness não é luxo e nem moda. É uma habilidade humana fundamental, uma forma de estarmos inteiros, presentes e atentos ao que acontece em nós. Quando paramos para respirar, lembramos que a vida não é feita apenas das pressões externas, mas da forma como escolhemos responder a elas. Vivemos acelerados, sempre reagindo, e a meditação devolve a capacidade de escolher com mais lucidez.

Foto: Alile Dara Onawale

O corpo também volta a ocupar seu lugar nesse processo. Ele não é só uma ferramenta de sobrevivência, mas um espaço de memória, sensação e sabedoria. Muitas das dores que carregamos vêm de experiências nossas e até de gerações anteriores. Quando meditamos, damos ao corpo a oportunidade de reorganizar essas camadas internas e de nos mostrar caminhos mais suaves.

Cuidar da saúde de forma integrativa também facilita essa prática. Dormir melhor, respirar de forma consciente e nutrir o corpo ajuda a mente a se estabilizar. Ainda assim, é importante reconhecer que esse conhecimento nem sempre chega a todos. Existe um viés social quando falamos de bem-estar. Algumas pessoas têm acesso a práticas e informação, enquanto outras lutam para sobreviver. Democratizar o cuidado é essencial para que a meditação deixe de ser privilégio e se torne direito.

Foto: Yan Carpenter

A neurociência mostra que a felicidade tem mais relação com o modo como conduzimos a vida do que com eventos isolados. E quando meditamos, ativamos áreas do cérebro ligadas à paz, à clareza e à gratidão. Quanto mais praticamos, mais conseguimos decidir como queremos responder ao que nos afeta, ao invés de apenas reagir no impulso. Essa escolha é uma forma de liberdade.

O Brasil é o país mais ansioso do mundo segundo a OMS, e a pandemia escancarou essa realidade. Enquanto alguns puderam ficar recolhidos em casa, outros precisaram se expor para trabalhar e cuidar do que era essencial. Ficou evidente que nem todos vivem as mesmas condições e que a saúde mental também atravessa desigualdades. Mesmo assim, a meditação continua sendo uma ferramenta acessível. Respirar é algo que pertence a todos.

Meditar é também um gesto transgeracional. Ao criar coragem para olhar para dentro, quebramos padrões que talvez tenham se repetido por décadas em nossas famílias. Cada pausa abre espaço para que as próximas gerações encontrem menos peso e mais liberdade.

Foto: Pri Correa

A prática não transforma o mundo externo de imediato, mas é um convite para não repetirmos um olhar colonizado sobre quem somos. Meditar não começou em laboratórios modernos nem em retiros de luxo. Meditar sempre fez parte da terra que pisamos. É o que os povos indígenas fazem quando escutam o espírito da floresta. É o que nossas benzedeiras fazem quando sopram cura sobre um corpo cansado. E é também o que a capoeira ensina: transformar movimento em consciência.

A capoeira é uma das nossas práticas integrativas mais potentes — uma pedagogia brasileira do corpo. Assim como o yoga, ela une respiração, presença, estratégia, ritualidade e ancestralidade. Na roda, aprendemos a cair e levantar, a observar o outro, a mover com atenção. É um treino de autoconsciência tão profundo quanto qualquer prática meditativa. Reconhecer a capoeira como nossa forma ancestral de yoga é reafirmar que o Brasil sempre teve ferramentas poderosas de autoconhecimento, mesmo quando o mundo insistiu em não enxergá-las.

Lembrar disso é ampliar o sentido da prática e reconhecer que ela é ancestral, comunitária e profundamente nossa. A meditação nos chama a retomar esse pertencimento e, ao mesmo tempo, a desenvolver um senso crítico sobre o mundo. Quanto mais conscientes somos de nós, mais percebemos as desigualdades que atravessam a vida das pessoas. A presença nos torna responsáveis. Quem se conhece mais questiona mais. Quem questiona transforma.

Foto: Pri Correa

A prática não faz desaparecer o caos da vida. Não impede perdas, dores ou responsabilidades. Mas cria espaço interno. E com espaço, aparece a clareza. Com clareza, surgem escolhas. E com escolhas, nasce paz. Quanto mais meditamos, mais humanos nos tornamos no sentido mais profundo da palavra: atentos, compassivos e conscientes. Primeiro cuidamos de nós. Depois, naturalmente, cuidamos do mundo. Porque, no fim das contas, a meditação não é sobre fugir. É sobre estar presente o suficiente para viver com verdade.

O futuro é moldado pelas microescolhas que fazemos todos os dias. Cada vez que alguém se senta em silêncio, respira e observa a si mesmo, algo se reorganiza. Essa reorganização não fica apenas dentro da pessoa. Ela se espalha pelo ambiente, pelas relações e, com o tempo, pelo futuro. É assim que construímos um mundo menos ansioso, menos reativo e mais lúcido. Um mundo guiado por presença e propósito. Talvez seja esse o lembrete mais profundo de Ser feliz por nenhum motivo: a felicidade é uma prática cotidiana, silenciosa, mas capaz de criar transformações muito maiores do que imaginamos.


Neste texto e para ir além:

Documentário: Ser feliz por nenhum motivo, na aquarius

Documentário: Um ano de mindfulness, na aquarius

Documentário: Yoga: Arquitetura da paz, na aquarius


Tati Cassiano

Tati Cassiano é natural de Salvador, preta, periférica e uma multipotência. É atriz, circense, dançarina, modelo e professora de yoga, conceito que mudou sua vida por completo. Atua como instrutora de Vinyasa Flow e é idealizadora do projeto Ubuntu Yoga, um espaço de acolhimento e pertencimento para pessoas pretas na diáspora, que buscam possibilidades de se reinventar coletivamente através da conexão do corpo e espírito.

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