as diferentes configurações da passagem dos dias; o tempo dos bebês e dos idosos, as dores e os partos provocados e recebidos por ele e e a vontade que não acabe tão cedo.

As três idades da mulher | Gustav Klimt
Eu lembro perfeitamente o exato momento em que o tempo começou a passar de forma diferente na minha vida. Faz quase 7 anos. Foi no dia 4 de outubro de 2017. Eu estava grávida de 40 semanas e, por volta de 00h, senti o que parecia uma bruma leve se acender no meu ventre. Era o início de um trabalho de parto animadíssimo que foi culminar com o nascimento do Tomás, meu primeiro filho, entre 10h05 e 10h10 do dia seguinte, no banco traseiro do carro a caminho do hospital. De lá para cá, tudo mudou, mas, para mim, ficou claro como a definição de segundos, minutos, horas e dias deu uma dilatada, assim como o meu corpo durante o parto.
Trinta segundos não parecem muita coisa, a não ser que você esteja sentindo uma contração. Vinte e cinco minutos se transformam em uma eternidade quando você está colocando um bebê para dormir depois de um dia exaustivo. Quinze minutos sozinha no supermercado nesta época pareciam horas porque significava liberdade. Foi impressionante como todas as referências mudaram de forma brusca desde que o Tomás nasceu: o que passou a definir o tempo de todas as coisas foram as tarefas que o mantinham vivo.
De lá para cá tudo mudou, ele cresceu e minha outra filha nasceu. Mas tem algo que se manteve claro para mim: essa diferença na percepção da passagem do tempo. De alguma forma, eu comecei a olhar para ele de um jeito mais respeitoso, menos banal. Percebi o quanto ele corre e o quanto eu nunca tinha enxergado. Ele passou a valer muito e eu passei a cuidar melhor de cada um dos seus segundos.

Ilustração do livro Para não acabar tão cedo | Clarice Freire
“As pessoas perdem um pouco do brilho quando ficam muito em minha companhia”, diz o narrador, que é o Tempo, no romance Para não acabar tão cedo, de Clarice Freire. Nele, duas irmãs já idosas, Guta e Lia, acordam um dia com seus corpos de 30 anos. Entre o apavoramento e a possibilidade de loucura, acompanhamos um belo acerto de contas na visão do Tempo: “Aquela conversa já havia se tornado um reencontro de duas pessoas que se viam todos os dias.” No livro, o Tempo dilata e oferece mais uma chance para as irmãs enfrentarem suas diferenças e terem conversas corajosas, impossibilitadas antes pelas perdas e lutos da vida. Que beleza e força a ficção da Clarice tem: a união da experiência de toda uma vida com a retomada do corpo jovem. A vida real não nos dá essa escolha mágica.
Tomás, que vai fazer em breve 7 anos, virou choroso outro dia para mim e falou: “Mãe, eu acho que não quero fazer aniversário. Eu não quero crescer.” Minha vontade foi agarrá-lo e dizer: “Eu te entendo, também não queria que você crescesse”, porém a verdade é que fiquei um pouco chocada porque ele sempre amou fazer aniversário. Depois de um pouco de conversa, ele acabou confessando que o motivo era porque já tinha percebido que quando as crianças crescem elas ficam longe dos pais e ele não queria isso. Achei o sofrimento genuíno e, estudando, aprendi que existe esse entendimento maior sobre a passagem do tempo nas crianças a partir dessa idade. Elas, acostumadas a viver apenas o presente, começam a ter uma noção maior de passado e futuro. Acolhi e, ao mesmo tempo, pensei se valia a pena gravar esse áudio para mostrar ao Tomás de 15 anos quando ele não quiser mais sair comigo. 😉

Imagem divulgação | Quantos dias, quantas noites.
Recentemente assisti na aquarius ao documentário Quantos dias quantas noites, do Cacau Rodhen, que a princípio, é um filme sobre longevidade, mas que se transforma ao passar dos minutos em uma delicada conversa sobre a relatividade e a força do tempo. É impossível não pensar no tempo em companhia da morte, na busca pelo propósito que aparece quando nos tornamos adultos versus a realidade que vivemos todos os dias. A partir da conversa com personagens e especialistas, nos faz refletir sobre a própria existência e as desigualdades que moldam de forma muito diferente o que tratamos como velhice.
É como diz Ana Claudia Quintana Arantes, médica e escritora: “É mais gostoso viver uma vida que respeita a morte. Porque ela vai chegar. Você precisa se preparar para estar vivo no dia que ela chegar. E aí sim, esse dia vai ser um dia que a morte vale a pena viver.” Foram muitos os momentos que me peguei durante o filme pensando nesse meio do caminho onde se enxerga e toca as pontas da vida. Ao mesmo tempo que vejo bebês nascerem de pessoas próximas, vejo pais e mães das mesmas pessoas próximas irem embora. Que gangorra curiosa o tempo detém, com uma elasticidade onde ensina e maltrata. Nesse pensamento é impossível não lembrar da representação mitológica de Chronos, sempre com uma foice na mão, e que, com inveja, teria castrado seu pai, Urano, para se tornar o deus do universo. Na sequência do mito, ele comia seus filhos assim que nasciam, com medo de ser destronado. Não chega a ser uma imagem de uma entidade muito receptiva, né?

Saturno devorando um filho | Francisco de Goya
Eu não sei como sentiria a passagem do tempo se não tivesse filhos. Acredito que ele chegue e mostre suas marcas para todos, mas é que, com crianças em casa, fica impossível não enxergá-lo e não sentir o peso de suas marcas. Elas são vincadas todos os dias. Simultaneamente, não dá para trocar quem sou hoje por quem eu era no passado. A experiência e o repertório parecem tão mais intrigantes que o corpo jovem. Sinto que, por isso, tenho me interessado tanto por ler sobre esse futuro e o que acontece em um país que está envelhecendo cada vez mais (foi um aumento de 57,4% nos últimos 12 anos), e que esse fato é tratado como um problema e um fardo para a família, para o Estado e para a sociedade.
Fica a dicotomia: nunca essa pauta precisou tanto ser tratada pelos jovens. Como fazer com que o papo sobre longevidade não fique restrito aos problemas de quando chegarmos lá? O quanto a não exclusão dessa grande parcela da população é crucial para que eles sejam vistos e respeitados? Afinal, como diz o Tempo em Para não acabar tão cedo:
“(Você não está velha, eu sopro. Se estivesse, na verdade,
seria maravilhoso, falo baixinho e confidente,
como quem reza.
Lia, velhice
é a dádiva
do bom vivo
que se preza.)”

Imagem divulgação | Quantos dias, quantas noites.
Neste texto e para ir além: |

Filme: Quantos dias, quantas noites, na aquarius

Livro: Para não acabar tão cedo, de Clarice Freire

Estudo: A passagem do tempo em Klimt, de Manan Terra

Heloiza Daou (@helodaou) é movida à palavra, diretora de marketing na aquarius e Downtown Filmes. Obsessiva por boas histórias: dos livros (sempre), dos filmes e da vida.
Postar um
comentário