Tudo aconteceu muito rápido. Era um câncer no pâncreas e o médico havia dado seis meses de vida para a minha mãe. Fiquei perto dela o máximo que pude.
Havia um esforço comovente de manter as trivialidades: a planta que ela regou e floresceu. O queijo cottage na geladeira temperado com cheiro verde e azeite. As pausas para ouvirmos música juntos. Como no dia em que coloquei Maria Bethânia cantando “Tocando em frente”.
Ando devagar / Porque já tive pressa / E levo esse sorriso / Porque já chorei demais
Compartilhamos o silêncio reverente de quem está diante de algo misterioso. Como se a gente enxergasse um perfume a se espalhar no ambiente. Era a presença de uma voz que preencheu a sala e nos conectou numa nova sensibilidade. Por alguns minutos, aquela contagem regressiva estava suspensa. A voz de Bethânia era uma forma de oração.

Hoje me sinto mais forte / Mais feliz, quem sabe / Só levo a certeza / De que muito pouco sei / Ou nada sei
Ainda nos escombros do terrível diagnóstico, fizemos um pacto: eu lhe prometi uma neta e ela prometeu que iria conhecê-la. Começou a quimioterapia e adaptamos nossas rotinas para os efeitos colaterais. Em 2014, pude ver minha mãe pegar Alice no colo. Ela ainda esteve presente, radiante, no aniversário de um ano. Silvia Kaufmann foi uma mãe luminosa. Eu e meus dois irmãos sempre lembramos dela com um sorriso.

É preciso amor / Pra poder pulsar / É preciso paz pra poder sorrir / É preciso a chuva para florir
Todas essas lembranças voltaram quando assisti ao filme “Dosed: a viagem de uma vida”.
O documentário conta a história da canadense Laurie Brooks, que tem quatro filhos, e foi desenganada pelos médicos, que lhe deram um ano de vida. Mesmo com a família amorosa, os filhos criados e uma boa condição financeira, o dilema era o mesmo: como lidar, todos os dias, com o tic-tac das últimas horas? Como pensar em outra coisa?
A frase que mais me marcou foi dita por Laurie no meio do filme: “Quando você lida com câncer, o tratamento médico atua no seu corpo. Sentia falta de algo que cuidasse da minha cabeça”.
Laurie combinou a quimioterapia com psilocibina ou, como diz no filme, uma viagem com cogumelos mágicos. Na primeira utilização, sentiu seu corpo viajando no espaço e entrou numa atmosfera escura que associou à morte. Sozinha e assustada, sentiu uma mulher pegar na sua mão. Era sua avó. A mão quente da vida a guiou para fora da escuridão e tudo voltou a ser iluminado e amoroso. “É assim que vou me sentir no paraíso, um sentimento maravilhoso”. Laurie sentiu uma profunda conexão com o universo, com o tempo e com a finitude.
Depois da primeira experiência, Laurie respondeu, de forma definitiva, a pergunta que lhe perseguia: “Meu marido e meus filhos ficarão bem se eu morrer?”. E teve clareza para mudar seu comportamento para aproveitar o tempo que resta.
Há interseções com a religiosidade, mas o filme faz questão de localizar as experiências psilocibina no campo da ciência e enfatizar as qualidades dos cogumelos para combater a ansiedade, a dor e a raiva. Até porque a religiosidade e a ciência podem ser complementares.

Num comovente encontro com Gabor Maté, Laurie falou do peso que carregou por passar a vida querendo se adequar ao desejo de seus pais. Usou o termo “people pleaser” para se descrever. E Maté interveio: “As pessoas falam da doença, mas não falam do processo. É a vida que está lutando dentro de você. Se você mudar sua maneira, pode mudar a maneira como seu corpo trabalha. Há inúmeros casos impressionantes de pessoas que ficaram mais autênticas consigo mesmas e colheram os frutos”.
A viagem de Laurie a transformou. Seus dias ficaram mais ensolarados e conectados com o tempo presente. Passou a olhar com mais intensidade para os filhos, o marido, a natureza e toda a forma de vida. Laurie tomou coragem e contou para a mãe que usava cogumelos, passou a fazer uso medicinal da maconha e caiu para trás quando soube que o câncer estava em remissão.
Todo mundo ama um dia / Todo mundo chora / Um dia a gente chega / E no outro vai embora
O filme também me fez lembrar que minha mãe também se transformou profundamente nos últimos anos de vida: ficou mais amorosa, paciente e corajosa. Assim como Laurie, à sua maneira, ela decidiu desfrutar do tempo que restava. A família ficou mais leve e flutuou em volta dela.
Mas ela partiu sem que a gente tivesse conhecimento de viagens como as de Laurie. Torço para que o filme sirva, entre outras coisas, para ampliar o alcance de tratamentos contra o câncer que ajam no corpo e na mente.
Cada um de nós compõe a sua história / E cada ser em si carrega o dom de ser capaz / De ser feliz