
Garota, eu vou pra Califórnia
Falar de The Endless Summer, para mim, é falar de surf e praias paradisíacas, é claro, mas também do subúrbio do Rio de Janeiro nos anos 1980 — momento e lugar em que vivi a minha infância como uma criança nerd com a coordenação motora de uma pedra portuguesa. Imagina se algum dia eu conseguiria me equilibrar em cima de uma prancha? Abafa. Mas o que me faltava em ímpeto esportista me sobrava em curiosidade intelectual e amor ao cinema.
Aliás, justiça seja feita: essas coisas não brotam do nada, não surgem no éter. Nasci numa família cujos pais eram um casal de classe média baixa, ou, na piadinha very british de George Orwell, numa família que poderia ser definida como uma representante legítima da “alta classe média baixa”.
Bens materiais e financeiros talvez não estivessem tão disponíveis e acessíveis à minha família; por outro lado, bens culturais e intelectuais sempre estiveram. Então o resumo é o de que cresci numa casa com uma biblioteca excelente: talvez não tão grande e numerosa, mas certamente pautada por uma curadoria impecável de títulos e autores.

Daí que me lembro de tomar café da manhã, almoçar e jantar ao lado de lombadas de livros cuja temática eu sequer desconfiava, mas que eram obras que já me impressionavam por algum detalhe aparentemente lateral ou secundário: uma tipografia em vermelho setentista ou um título abstrato e sugestivo: Noites antigas, de Norman Mailer, por exemplo. Vai vendo.
Essa divagação inicial é só para te dar a seguinte contextualização: lembro de frequentar com meus pais, durante a infância, uma locadora de bairro, algo que a galera Gen Z só ouviu falar, da mesma forma que eu escutava sobre ferro de passar roupa à carvão, quando moleque. A cada vez que eu entrava nela, nessa locadora que eu tava te falando, sempre me encantava o pôster de The Endless Summer, um filme dos anos sessenta, mas que, por motivos que até hoje me são estranhos, experimentava uma ressurgência de popularidade na década de oitenta.
O pôster, como o filme, é muito bonito e é baseado em algumas escolhas estéticas simples, mas extremamente efetivas. Foi criado por John Van Hamersveld, um cara que também era surfista e que, na época, cursava o Art Center College of Design. Anos mais tarde se tornaria o diretor de arte tanto da Surfing Illustrated Magazine quanto da revista Surfer. Achei engraçado quando soube que eu não fui o único a me apaixonar pela arte criada por Hamersveld. Não à toa ela está em exposição permanente numa ala do Museu Nacional de História Americana, para quem quiser admirar e conferir. Mas, assim, vamos falar do filme? Porque nessa brincadeira, nessa fofoquinha, já se foram seis parágrafos, né?

The Endless Summer, o primeiro canal OFF
Quando estreou, em 1966, o crítico de cinema Roger Ebert escreveu o seguinte sobre The Endless Summer: “Como pode ser tão difícil descrever o charme peculiar de um filme tão descomplicado, fresco e natural, criado apenas para agradar aos nossos olhos?” Sob muitos aspectos, The Endless Summer foi o primeiro canal OFF.
O filme tem um tom irônico de documentário educativo da década de 1950. O fato de ser repleto de piadas do tio do pavê (algumas que não envelheceram bem, é verdade) e sobre uma cena — pelo menos em alguma medida — contracultural, só aumenta a graça da coisa. É o grande documentário de surf por excelência, não foi o primeiro mas certamente é o mais popular e relevante na história do gênero. Foi dirigido, editado, produzido e narrado por Bruce Brown, um californiano que pegava onda e que queria mostrar ao mundo o novo estilo de vida e cultura que estavam emergindo em São Francisco, nos EUA.
Bruce Brown começou sua carreira como cineasta ainda moleque, em 1955. Quando estava alistado no serviço militar, no Havaí, e costumava filmar seus amigos surfando. Não demorou até que compreendesse que tinha algum talento com esse negócio de câmera e que, com alguma sorte e dedicação, poderia transformar aquele hobby em uma profissão. No filme, Brown acompanha dois surfistas profissionais, Mike Hynson e Robert August, na surf trip mais famosa já documentada. Eles viajam para as regiões costeiras da Austrália, Nova Zelândia, Taiti, Havaí, Senegal, Gana e África do Sul, em busca de boas ondas e novas aventuras. The Endless Summer foi um filme barato para a época: custou 50 mil dólares. Se você pensar que é um documentário de 90 minutos, filmado em locação externa, logo você entende que o diretor teve que dar nó em pingo d’água.

Uma espécie de Éden, só que com altas ondas
Com apenas uma câmera 16mm e algumas lentes teleobjetivas, Brown consegue captar, e, de certa forma, nos induzir a um estado meditativo de beleza e contemplação. Outra coisa digna de nota é o fato de que ele consiga uma fotografia tão incrível com tão poucos recursos.
A trilha do filme é composta pelos The Sandals, os responsáveis pela sonoridade atmosférica e aventuresca do longa: pioneiros do surf rock dos anos sessenta, que misturavam elementos de jazz, sobretudo no uso de fanfarras agudas, com o conhecido rock da cena californiana da época.
As manobras de Mike Hynson e Robert August são captadas com astúcia, precisão e mesmo algum lirismo. A narração do diretor, e aquilo que ele filma, e o jeito que ele opta por filmar, sugerem uma atmosfera de inocência, ou um estágio anterior à sua perda. Quase como se acompanhássemos os dois surfistas numa espécie de Éden, pré-pecado original.
O problema é que se essa inocência presumida funciona esteticamente, e sobretudo do ponto de vista narrativo, ela cobra um custo moral alto. Como você filma dois surfistas brancos pegando onda na África do Sul, em plena vigência do regime de apartheid, e não fala nada a respeito? Veja, ninguém aqui tá cobrando do diretor uma postura de um Costa-Gravas, imagina. Mas, vamos combinar, né.

The Endless Summer tem lá a sua dimensão de escapismo, claro. O ano é 1964: momento da escalada agressiva da Guerra do Vietnã, do primeiro balão de ensaio do nascente movimento conservador americano, com a campanha presidencial de Barry Goldwater, e de toda a agenda dos direitos civis. Quando você assiste ao filme de Brown, você é arremessado numa dimensão paralela idílica, na qual só existe o barulho das ondas do mar e uma beleza costeira de arrombar a retina.
Mesmo com alguns figurões de Hollywood tendo gostado do filme, como o astro Steve McQueen, por exemplo, inicialmente nenhum estúdio se interessou em distribuí-lo. O golpe de mestre de Brown foi convertê-lo para 35mm e, ato contínuo, alugar um cinema em Nova Iorque para a sua exibição. Essa foi uma ideia brilhante, porque documentários sobre surf não eram comuns no circuito de cinema nova-iorquino da época. No fim, o filme recebeu bastante publicidade e acabou ficando em cartaz ao longo de um ano.
O surf como experiência religiosa
É impossível não pensar em The Endless Summer quando assistimos, sei lá, Caçadores de emoção, o thriller de 1991, com Keanu Reeves e Patrick Swayze vivendo um jogo de polícia e ladrão, ao mesmo tempo em que buscam a onda perfeita. Também é visível a influência, no conteúdo e na forma, em The September Sessions: o documentário escrito e dirigido pelo cineasta e músico Jack Johnson, no qual ele filma gigantes como Kelly Slater, Rob Machado e Shane Dorian, todos eles seus amigos pessoais, numa surf trip na Indonésia.

Um dos aspectos mais notáveis de The Endless Summer é o fato de ter sido um filme que de fato furou a sua bolha mais imediata. Quer dizer, jamais foi uma obra de nicho, mesmo sendo essa a trajetória mais comum de documentários esportivos. Na verdade, ele foi o responsável não apenas pela divulgação da cultura do surf, como também por criar um foco de interesse mais amplo na sua prática ao redor do mundo.
Aliás, o filme de Brown foi responsável não apenas pela elevação do surf à categoria de “esporte respeitável”, ele contribuiu para algo muito maior: enxergou nele importância metafísica, definiu ritos e uma liturgia, e, no fim, o transformou em religião. Não é todo dia que isso acontece.
Neste texto e para ir além:

Documentário: The Endless Summer, na aquarius

Livro: Noites Antigas, de Norman Mailer

Filme: Caçadores de Emoção, no Prime Video
