
História de origem
“Com o que você sonhava antes da fama?”, uma repórter indaga a John Lennon, no início de John Lennon: o sonhador, documentário de Piers Garland disponível na aquarius. “Me tornar rico”, ele responde sorrindo. E emenda: “Mas o que eu queria mesmo era ser um beatle”.
Lennon era filho de Alfred e Julia Lennon. Devido às brigas constantes dos dois, foi criado por sua tia Mimi, e quase não teve contato com os pais. Cresceu com acessos de raiva, o que, psicanálise de botequim à parte, ajudou a transformá-lo no beatle mais linguarudo e combativo dos quatro.

Aos 17 anos resolveu se dedicar à música e finalmente montou uma banda: The Quarrymen, que se apresentava em boates e demais inferninhos de Liverpool. Paul McCartney também tentava seguir o caminho musical, quando, em 1957, numa feira da igreja local, assistiu pela primeira vez a banda de Lennon ao vivo. Algo rapidamente capturou a atenção de Paul: Lennon tocava seu violão com afinação de banjo. Era um troço original e bonito pra danar.
Os The Quarrymen tocavam um ritmo conhecido como skiffle: um gênero britânico popular nas décadas de 1940 e 1950, que precedeu o rock, e podia ser definido como uma mistura de folk americano, blues e jazz de Nova Orleans. Ao mesmo tempo, era um negócio cru, cheio de energia e que originou as bases estéticas e harmônicas da formação, lá na frente, de bandas como The Beatles e The Rolling Stones.

Após se conhecerem, Lennon e McCartney se tornaram amigos e passaram a tocar juntos e a ensaiar sempre que possível. Logo Paul foi convidado para integrar os The Quarrymen, até que, pouco depois, o grupo se separou e os dois decidiram formar uma nova banda: os Beatles, que, agora com George Harrison e Ringo Starr, em apenas 3 anos saíram da cena underground de Liverpool direto para turnês mundiais.
Brian Epstein, futuro empresário da banda, e alguém que se tornou conhecido como “o quinto beatle”, os assistiu pela primeira vez no Cavern Club, em Liverpool, e de cara se impressionou com a música, o ritmo e o senso de humor dos garotos em cima do palco.
“Por favor, sacudam suas joias”
Se Epstein foi cuidadoso em criar uma imagem dos Beatles que fosse mais palatável ao público, e aqui me refiro à fase terninho e cabelinho de cuia (moptop), os Rolling Stones optaram pela rota inversa: buscaram uma imagem autêntica que expressasse a rebeldia juvenil dos integrantes. Não à toa, Lennon implicou inúmeras vezes com Mick Jagger. O palpite de Tony Calder, antigo empresário dos Stones, era o de que o beatle queria que sua banda expressasse esteticamente uma rebeldia semelhante à dos Stones, e não o lookinho “limpo e aceitável” criado por Epstein.

Em 4 de novembro de 1963, os Beatles foram convidados para tocar na Royal Variety Performance, na frente da Rainha Mãe e da Princesa Margaret. Nessa época, Edward Heath, líder parlamentar do Partido Conservador, afirmou que teria dificuldades em entender o inglês com sotaque operário de Liverpool, quando os Beatles conversassem com a Rainha. Em resposta à Heath, durante a performance, Lennon provocou: “Vocês aí nos assentos mais baratos, batam palmas. E o resto de vocês, por favor, sacudam suas joias”.
Muita gente que escreve sobre o impacto cultural da beatlemania destaca o caráter, pelo menos em algum nível, “manufaturado” da coisa. O show de 1963 no Palladium, mostrado em detalhes no documentário, é tido como o início de tudo. As imagens registradas da histeria coletiva durante a apresentação se tornaram históricas, além de prenúncio de uma constante na trajetória do grupo. O auge da beatlemania foi em 1965, quando os integrantes da banda foram condecorados pela Rainha, no Palácio de Buckingham.
A tese do filme é a de que a sonoridade da fase terninho chega ao seu ápice com Help!. Rubber Soul, o disco seguinte, impacta a Costa Oeste dos EUA, sobretudo a cena hippie e psicodélica californiana. Bandas como The Byrds, Buffalo Springfield e Jefferson Airplane, todas elas se impressionaram e, de certa forma, foram influenciadas pela obra. O álbum lançado na sequência, Revolver, iria acelerar o namoro dos Beatles com a psicodelia e experimentalismos variados.

Em março de 1966, Lennon envolveu a banda em um grande bafafá com a imprensa americana, ao afirmar que eram maiores do que Jesus. Sua declaração gerou o maior boicote que um artista pop havia sofrido até então. E, como saldo geral, centenas de discos queimados em atos públicos, além de inúmeras ameaças de grupos extremistas cristãos, incluindo a famigerada Ku Klux Klan.
Esses eventos culminaram com um pedido público de desculpas e uma fadiga da banda com turnês e tudo que vinha a reboque. Em 1967 os Beatles decidiram se concentrar apenas no aprimoramento de seu som. Além disso, havia uma dissonância entre a sonoridade que conseguiam obter dentro de estúdio e aquela que era passível de reprodução em cima do palco. Na época a tecnologia não permitia que isso fosse possível e havia um fosso quase intransponível entre um formato e outro.
Lennon x Nixon
Em 1966, antes do lançamento do Sgt. Peppers, Lennon conheceu Yoko Ono: período fundamental de sua vida pessoal e trajetória artística. Momento no qual passou do garoto meio sexista e metido a valentão de Liverpool, que às vezes votava no Partido Conservador, ao homem maduro, leitor de jornais de esquerda como o Village Voice, e defensor de pautas como feminismo e pacifismo.

Ocorre que, à medida que Lennon se interessava por política, e que também mergulhava na sua relação com Yoko, mais se afastava dos Beatles. Até que, após o lançamento do White Album, cada integrante parecia estar mais focado em projetos solos do que na própria banda.
Em 1969 Lennon era vocal em relação à sua oposição aos governos dos EUA e da Inglaterra. Enquanto o primeiro escalava a Guerra do Vietnã, o segundo avançava sobre Biafra, na África Ocidental. Por conta disso, Lennon decidiu devolver à Rainha a condecoração concedida anos antes.
Depois de Let it Be, um disco criticado na época, os Beatles finalmente acabaram. Em 1970 Lennon decidiu criar uma banda conceitual com Yoko Ono, e, em 1971, o excesso de assédio na Inglaterra o levou a se mudar para Nova York. Pouco depois de ir para os EUA, o ex-beatle começou a sofrer ataques do governo Nixon: sobretudo de Strom Thurmond, senador pela Carolina do Sul, e um reacionário que havia sido abertamente segregacionista nas décadas de 1940 e 1950.
A Casa Branca temia que Lennon atrapalhasse a Convenção Nacional Republicana e meio que criasse um movimento de base, com jovens ativistas ligados ao Partido Democrata. Como consequência, colocaram o Departamento de Justiça em seu encalço, e abriram uma investigação de legalidade duvidosa. Lennon obteve seu visto de cidadão americano apenas em 1976.

Em 5 de dezembro de 1980, três noites antes de ser assassinado em frente à sua casa, no Edifício Dakota, Lennon falou por horas com Jonathan Cott, o editor da revista Rolling Stone. No meio da conversa, comentou o seguinte, sobre as ambiguidades da fama e da idolatria pop: “[é] como aqueles garotos de Liverpool que só gostavam de nós quando estávamos em Liverpool — muitos deles nos abandonaram porque ficamos grandes em Manchester, certo? Eles achavam que tínhamos nos vendido”.
John Lennon viveu uma trajetória complexa. Começou como ídolo pop e morreu como uma mistura de intelectual público, artista de vanguarda e ativista político. Aos que poderiam sugerir incoerência ou até algum oportunismo midiático, é instrutivo recordar de um famoso verso, de um poeta americano do século passado: “eu sou imenso, contenho multidões”.
Neste texto e para ir além:

Documentário: John Lennon: o sonhador, na aquarius

Álbum: Revolver, dos Beatles

Livro: Quem matou John Lennon?, de Lesley-Ann Jones
