Contradições com raízes seculares

Nesta edição: um país repleto de tradição e incoerências, a alimentação como potencializador de uma nova perspectiva de vida e a relação de uma população com a comida e os animais

Filmes, para o bem ou para o mal, são mágicos. Eles mudam vidas, transformam pessoas. Este é o grande encanto da sétima arte, e, talvez, o principal motivo por encantar o público há mais de um século.

Uma película pode tocar o telespectador por suas qualidades técnicas, mas é o tema e como ele é retratado que a torna inesquecível. Pense no incrível Ainda Estou Aqui: tudo nele é marcante, desde a fotografia até a trilha e a escolha dos figurantes, mas é a união de argumento e elenco que o transforma nesta obra-prima. O olhar da Fernanda Torres na cena em um restaurante ao perceber famílias felizes estará para sempre na lembrança de todos.

Quanto aos documentários, acredito que isso seja ainda mais forte quando o tema é menos recorrente e o roteiro é bem-construído. Caso de Muco: Contradição na Tradição, dirigido por Oberom Silva, que nos surpreende desde o primeiro minuto.

Uma trilha inesperada

A produção, íntima e sensível, mostra a viagem de Oberom e seu irmão desde Minas Gerais até a Índia para se aprofundarem nos princípios do yoga. Ao pensar a jornada, os dois esperavam comprovar, por meio de depoimentos de especialistas e gurus, seu comprometimento com a preservação da fauna e da flora e como ele dialoga com todas as tradições.

Contudo, o que encontraram foi um país forjado em contradições que põem em dúvida até a tradição do próprio yoga. O filme introduz uma visão crítica dos hábitos da população indiana, com destaque para o consumo alimentício e como ele vai de encontro ao que prega a ancestral filosofia local.

A luta contra a contradição

Segundo o dicionário Michaelis, contradição é “incoerência entre palavras e ações; discrepância, incongruência”.

Assim como a percebemos em Muco, a contradição era parte relevante da minha vida até 2020 (em maior grau, pois nós, humanos, seremos sempre contraditórios em alguma medida). Desde pequeno fui aquela pessoa que amava animal, respeitava a natureza e pregava a necessidade de uma alimentação saudável para todos, principalmente para as crianças. Ao mesmo tempo, agia ao contrário, do tipo “faça o que eu digo, não faça o que que faço”.

A rotina era intensa: bebia 5 vezes por semana, comia carne diariamente, abusava de laticínios e deixava de lado vegetais, frutas e grãos. Nos fins de semana, churrasco era certo, além do café da manhã com muito queijo e iogurte.

Não tenho certeza do momento em que a chave virou, mas alguns marcos são óbvios.

O primeiro foi o filme Okja (2017), do coreano Bong Joon-ho, que mostra a relação de uma menina com um porco geneticamente modificado, que tem como destino sua morte forçada. A tristeza da jovem, às cenas pré-abate e a ganância da indústria são dolorosas. Apesar de ser uma ficção até leve para o tema que aborda, o modo como o diretor passa sua mensagem é inesquecível.

Depois veio o livro Enterre seus mortos (Companhia das Letras, 2018), de Ana Paula Maia, com o protagonista Edgar Wilson, um homem que trabalha no órgão responsável por recolher animais mortos em estradas e levá-los para um depósito onde são triturados num grande moedor. A história não possui temática parecida com a de Muco ou Okja, mas trata, entre outras coisas, da insignificância animal, do desleixo, do desprezo, que podem ser relacionados, inclusive, com a raça humana. Edgar era um ninguém, assim como os bichos esmagados sobre o asfalto.

Por fim, recordo-me da obra-prima de Jonathan Safran Foer Nós somos o clima (Rocco, 2020), em que ele demonstra que a diferença entre saber o que está acontecendo e agir a tempo de evitar o pior sempre está em nossas mãos. Ao mesmo tempo, hábitos são difíceis de mudar, quanto mais aqueles construídos ao longo de séculos.

A partir daí, minha alimentação e meu estilo de vida mudaram, tanto pela saúde, afinal, tornei-me pai e os anos pesam, quanto pela preocupação com os animais e, consequentemente, com o planeta. A melhor parte é que essa nova fase é mais do que uma simples mudança, é uma jornada de autoconhecimento, de compreensão de meus limites. No fim, você se sente muito mais integrado ao meio ambiente e à humanidade.

A incoerência indiana

A vaca é um animal sagrado para o hinduísmo, religião de 80% da população da Índia. Simultaneamente, o país compete com o Brasil pelo posto de maior exportador de carne do planeta.

A Índia tem criado programas para melhorar sua qualidade do ar, enquanto o Programa Ambiental da ONU mostra que a produção de gordura e proteína animal representa quase 40% das causas dos impactos ambientais devido à emissão de gases, ao uso da terra e à destruição das florestas.

Oberom, em sua aventura pela região, comprovou essas e outras contradições de um povo que preza e respeita conceitos religiosos seculares. Sua dieta, por exemplo, é tida como vegetariana, mas é ditada pelo consumo do leite, não só em estado puro, mas como componente de pratos típicos. Não esquecendo o ghee, o ouro líquido, um tipo de manteiga clarificada muito usado na culinária indiana, feito com leite de vaca ou de búfala.

Em suas andanças, o cineasta indagou especialistas sobre a incoerência da dieta e a relação de amor pela vaca ao mesmo tempo que a população promove a pecuária leiteira. Entre as respostas, surgia sempre uma questão: se Krishna tomava leite, por que o povo não deveria? Se os gurus ingerem cerca de um litro deste alimento por dia, por que as pessoas não poderiam imitá-los? Na cultura local, os indianos não contestam os seres considerados superiores.

“Estamos numa guerra contra a natureza.” (Satish Kumar)

Preocupação (ou não) com a saúde e os animais

Acredito que, para muitos, a Índia seja um local saudável devido ao consumo reduzido de carne animal e à alimentação balanceada de carboidratos, proteínas, fibras etc, o que gera um baixo teor de calorias.

Contudo, como mostrado pelos irmãos, os nativos têm ficado doentes em decorrência de sua alimentação ruim. E, mesmo alertados por profissionais da área (demonizados por cidadãos e autoridades), ignoram as recomendações – ou não acreditam nelas – e continuam consumindo os mesmos produtos. O leite, ainda visto pela maioria como algo maravilhoso e essencial, é um dos principais causadores de diversas enfermidades, especialmente, a diabetes.

Os antígenos contidos no leite vão funcionar em nosso corpo como ativadores do sistema imunológico, o que causa, entre vários problemas, o excesso de muco. Não por acaso, a Índia é, hoje, a capital mundial da diabetes.

Além das questões de saúde, o país enfrenta os maus tratos aos animais, causados pela pecuária leiteira e por seu abandono nas ruas. Para quem não consegue visualizar esse abandono, basta imaginar os cães e gatos nas ruas brasileiras e substitui-los por vacas e bezerros. Chocante, não?

Por fim, se a vaca é sagrada para os hindus, o local onde todos os seres divinos habitam, como é possível essa relação forte com o leite, mesmo sabendo de todo o mal que ele oferece para a saúde e do sofrimento causado pela ganância da indústria?

O yoga e suas peculiaridades

Não sou especialista no assunto, mas sempre tive a ideia de que o yoga reunia apenas conceitos saudáveis, sentimentos sinceros, como bondade e pureza, e jornada de autoconhecimento. Acredito que tudo seja real, porém, Oberom e seu irmão descobriram contradições marcantes nessa história.

O yoga preza pela necessidade de preservarmos a natureza e que nossa autorrealização só virá com uma ênfase forte na dieta. Por outro lado, muitos gurus defendem a dieta lactovegetariana, o que vai de encontro ao que é pregado: amor aos animais e não aceitação de qualquer tipo de violência contra eles.

Uma luz no fim do túnel?

Produções como Muco mostram que o mundo não é 8 ou 80. E muito do que se toma como verdade, talvez seja pela pessoa não estar inserida em determinada realidade. Nesta jornada de descobrimento e autoconhecimento, os irmãos sentiram isso na pele, pois muitas de suas convicções foram exterminadas e diversos questionamentos apareceram ao longo do processo. Sem sombra de dúvida, o mundo deles é outro desde que voltaram da Índia.

Muco tornou-se um novo marco em minha jornada, e o modo como eu percebia certos aspectos da vida e a ideia do que espero do mundo mudaram completamente. O filme, além de elucidativo, traz uma mensagem muito atual e cada vez mais necessária: não há mais lugar e tempo para o egoísmo.

Sobre a Índia, certeza apenas de que suas contradições são reais e que a saída só será possível diante de abnegação, mudança de estilo de vida e união de todos.


Neste texto e para ir além:

Filme: Muco: Contradição na Tradição, na aquarius

Filme: A Nova Ciência da Comida, na aquarius

Livro: Nós somos o clima, de Jonathan Safran Foer


André Sequeira

André Sequeira trabalha com livros há 16 anos e tem como maiores paixões a literatura, o cinema e esportes em geral.

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