Deusas, loucas e bruxas

Nesta edição: reflexões sobre ser uma mulher inconformada

Antígona, uma das protagonistas femininas mais antigas e conhecidas do mundo, disse na peça escrita por Sófocles: “E se disseres que ajo como louca eu te respondo que só sou louca na razão de um louco”. Inconformada pela injustiça de não poder enterrar o próprio irmão, desobedece às ordens do Rei. Banca o desejo de dar um fim digno a quem ama. De ser inconformada. E morre no final.

Ser uma mulher inconformada nunca foi bem digerido pela sociedade e a história dá conta de capítulos tenebrosos. No século XV, a caça às bruxas levou à fogueira mulheres que sabiam demais, curandeiras que controlavam o próprio corpo e ajudavam outras mulheres a fazer o mesmo, do parto à vontade de não parir. De doenças enigmáticas a dores conhecidas. O poder do conforto e da escolha estava na mão dessas mulheres. Na sabedoria acumulada por anos e passada de geração em geração, através do feitiço das palavras.

Não à toa, para operar milagres nas histórias antigas ou contemporâneas, eram precisas palavras mágicas, proferidas em voz alta. Abracadabra e o impossível era conjurado. O conhecimento sempre foi poder, e mulheres com poder eram perigosas principalmente em um mundo descobrindo a hereditariedade e entendendo o acúmulo de capital passado de pai para filho – aguçando a importância da origem da prole e, consequentemente, cercando os corpos femininos como garantia.

O afã ensandecido pela certeza da genética dos filhos transformou mulheres livres em inimigas e mulheres casadas em propriedade, uma aula de história imperdível dada por Silvia Federici no livro O Calibã e a Bruxa. O que fazer então com o incontrolável conhecimento e a desobediência de quem se recusava a seguir regras absurdas? Primeiro, nomear: bruxas. Depois, exterminar. A estimativa é que entre 40 a 50 mil pessoas foram queimadas em fogueiras acusadas de bruxaria, entre 1450 e 1750, sendo mais de 80% mulheres.

O problema de ignorarmos a história é repetir padrões sem saber ao certo qual raiz estamos regando. O que aconteceu entre os séculos XV e XVIII pode parecer distante, mas é mesmo? O destino das mulheres que bradavam a liberdade do próprio corpo na época das nossas avós pode não ter sido a fogueira, mas o cerceamento social também é um anulamento da existência. Mulheres divorciadas eram expulsas de igrejas, hostilizadas em ambientes sociais e os filhos dessas mulheres não eram aceitos em algumas escolas. As consequências de não ter o próprio corpo amarrado ao de um homem eram palpáveis.

Hoje em dia, o divórcio é comum na maior parte da sociedade, mas podemos andar com roupas curtas em qualquer lugar do país de forma segura? Ou podemos falar abertamente sobre transar com muitas pessoas sem que o peso do julgamento sufoque e defina toda a história da nossa vida?

A liberdade evocada pelas bruxas e queimada em praça pública ainda arde em nossa pele. Temos dificuldade de entrar em contato com o nosso próprio desejo porque nos foi ensinado que o verdadeiro valor feminino é ser desejada, escolhida, jamais escolher. Temos dificuldade em lidar com mulheres que bancam o próprio desejo porque quem busca e faz o que quer sai da norma. E não tem nada mais passível de crítica ou assustador (e encantador, vejam só) do que quem não segue roteiros pré-programados.

Na Argentina, durante o protesto Ni una A Menos do dia 8 de março que, entre tantas bandeiras importantes, chamava a atenção para leis contra o feminicídio, o cartaz “somos las nietas de las brujas que no pudisteis queimar” (somos as netas das bruxas que não conseguiram queimar) se popularizou na internet como um chamado em voz alta. Um aviso de que temos os saberes das que vieram antes da gente e seguimos vivas mas, mais do que vivas, seguimos recusando a morte de não existir como mulheres livres. Seguimos recusando a morte da desimportância, da falta de voz.

Rita Lee dizia que a mulher, com o passar dos anos, virava perua ou feiticeira. Olhando para o lado, vendo as mulheres que me acompanham e a mulher que estou me tornando, diria que não somos só as netas das bruxas que não foram queimadas. Somos nós as próprias bruxas que se recusam a pisar na fogueira. Seguimos resistindo. E passando nossa voz para as próximas gerações.

Somos loucas na razão de um louco, como dizia Antígona. Somos feiticeiras abençoadas pela padroeira Rita Lee. E se nossa liberdade inspira tanto medo, podem nos chamar de deusas, mas a verdade é uma só. Somos bruxas. Cuidado com a gente.


Iana Villela

Iana Villela é autora do livro Desobediência, pesquisadora de papéis de gênero e na nossa newsletter dessa semana fala um pouco sobre as bruxas de ontem e de hoje.

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