Aos 12 minutos do filme What Lies Inside: A Cura Diante do Trauma, ouvimos de seu criador, Luke A. Renner, uma frase marcante: “O trauma é um problema de narrativa”, e essas palavras vão ecoar ao longo de todo o documentário. Elas simbolizam que, de certa forma, todos nós somos sobreviventes e, em variadas gradações, levamos conosco cicatrizes do que vivemos — cicatrizes que muitas vezes mal somos capazes de nomear. Os sintomas são diversos: irritabilidade exacerbada, reações desproporcionais, repetições de padrões comportamentais negativos, medo, tristeza, depressão, ansiedade, dependência de álcool e drogas, entre tantas outras possibilidades.

Desde o início, Renner avisa que não se trata de um filme apenas sobre os dilemas internos de um homem branco — e o documentário não é mesmo só sobre ele. É sobre todos nós.
É comum associarmos o trauma psíquico a eventos extremos — acidente, morte, estupro, desastres naturais —, mas ele também pode nascer de vivências bem menos evidentes. Às vezes ele se instala em contextos familiares aparentemente saudáveis: uma infância em que sentimentos foram invalidados, em que se aprendeu a agradar para ser aceito, em que o silêncio pesava mais do que os gritos.

Repetidas ao longo do tempo, essas situações podem deixar marcas profundas.
O trauma é também aquilo que ficou suspenso, sem forma, sem sentido, sem linguagem. Quando um acontecimento nos fere profundamente, ele desorganiza o modo como contamos nossa própria história. O tempo se embaralha, a confiança no mundo se quebra, a conexão com o corpo falha. Faltam palavras. Faltam imagens. E o que não conseguimos narrar, muitas vezes, nos aprisiona.
O ponto de partida do filme de Renner é o terremoto que devastou o Haiti em 2010 — país onde o diretor morava na época e onde começou a apresentar sintomas de transtorno de estresse pós-traumático. Ao buscar tratamento, ele é conduzido de volta à infância, nos Estados Unidos, se deparando com um trauma mais antigo, do qual não tinha qualquer conhecimento.

Mas Renner não está sozinho nessa travessia. O documentário reúne pessoas que toparam se expor e compartilhar suas histórias — muitas delas duras, marcadas por abusos, perdas e silenciamentos. Talvez a potência do filme esteja justamente aí, no seu movimento de criar uma espécie de roda, onde nos enxergamos, nos comovemos e nos aproximamos do sofrimento do outro.
A participação de especialistas amplia nosso olhar e lança luz sobre aspectos que, aos poucos, nos ajudam a compreender nossas próprias vulnerabilidades, e também as de quem está ao nosso redor. O que está em jogo não é apenas o trauma, mas o desejo genuíno de compreendê-lo e, quem sabe, transformá-lo.

Em vez de propor uma resposta fácil ou uma forma de superação para o trauma psíquico, Renner cria com sua narrativa um espaço em que o silêncio, a escuta, o espanto e o choro conduzem entrevistados e espectadores a um reconhecimento mútuo. E mesmo após os créditos finais, essas sensações continuam reverberando, como um convite a olharmos para dentro de nós, lugar em que talvez possamos encontrar, misturado ao medo e à dor, algo libertador.
Neste texto e para ir além:

Filme: A Sabedoria do Trauma, Gabor Maté

Livro: O sentido da vida, de Contardo Calligaris