Os mistérios dentro de nós

Nesta edição: sobre feridas narcísicas, as histéricas que gestaram a psicanálise, sonhos, superego e conceitos freudianos que mudaram o mundo.

O ser humano não é, e não está, no centro de tudo. As três feridas narcísicas mencionadas por Freud lá em 1917 se referem às descobertas de Copérnico, Darwin e do próprio Sigmund. Copérnico deu o primeiro golpe quando afirmou que a Terra não é o centro do universo; Darwin nos colocou bem mais perto dos primatas do que à imagem e semelhança de Deus; e Freud fundou uma teoria, a psicanálise, que afirma que não somos o centro nem de nós mesmos.

Freud começou observando as histéricas atendidas pelo neurologista Josef Breuer em Viena no fim do século XIX. Parêntesis: na época, acreditava-se que a manifestação desse sofrimento psíquico só ocorria em mulheres – o próprio termo foi cunhado do grego hísteres, que significa útero. Hoje, a palavra histeria se refere a uma estrutura diagnóstica para várias condições psíquicas e que contempla todos os gêneros.

Essas mulheres apresentavam sintomas como paralisia, convulsões, perda de memória, mudanças de humor bruscas e muitas vezes não conseguiam sequer falar. Os exames clínicos não acusavam nenhuma alteração no organismo delas que justificasse esses comportamentos. Freud e Breuer desconfiaram, então, que os sintomas só podiam ser efeito de dinâmicas psíquicas e, ao fazerem a paciente falar de seus traumas, como em uma espécie de catarse, muitos desses sintomas desapareciam.

Foi a partir dessa experiência que Freud identificou que havia algo não dito que escapava à consciência e provocava grande sofrimento. Ele chamou esse algo, essa força invisível que se manifesta pela palavra, de inconsciente.

“O eu não é senhor em sua própria casa”, afirmou Freud.

Então há algo que está além do campo da consciência e que influencia nosso modo de estar no mundo, nossas fantasias e nosso comportamento? Quer dizer que somos governados por uma instância inconsciente à qual não temos acesso completo e que só pode nos ser revelada por meio das associações que fazemos de nossos sonhos ou de palavras que dizemos quando queríamos dizer outras?

São essas reflexões (e mais outras) queFreud 2.0 propõe. O documentário enxuto (com pouco mais de 50 minutos) é uma espécie de aperitivo, e seu objetivo é apresentar Sigmund Freud para aqueles que pouco sabem sobre o médico austríaco, ou nem sequer ouviram falar dele. O filme segue a trajetória de Freud do nascimento à morte, destacando os principais conceitos da teoria psicanalítica por ele criada e suas obras fundamentais, como A interpretação dos sonhos e Além do princípio do prazer. Para os já familiarizados com a psicanálise há um presente especial: as imagens de Freud em família – o documentário está recheado delas. Assistir aos trechos recuperados de filmagens do início do século passado é sempre um passeio através do tempo. Ver Freud em seu ambiente doméstico, um homem retratado com certa doçura e sempre bem-humorado, é imperdível.

Freud 2.0 propõe investigar se a psicanálise ainda é relevante no século XXI, e na tentativa de encontrar uma resposta a essa pergunta a obra busca pistas escutando a geração Z. Nessa viagem que percorre a primeira metade do século XX e também se debruça sobre os dias de hoje, o que de fato constatamos é que a sintomatologia das histéricas pode ter ficado para trás, mas o sofrimento psíquico é parte essencial da condição de existir. Hoje, não é tão comum encontrar (embora elas existam) mulheres gravemente paralisadas ou emudecidas por conta da repressão sexual que impede duramente as fantasias e os desejos de se expressarem. Mas a chamada geração digital sofre com transtornos alimentares, com o isolamento, a ansiedade, a xenofobia, e os casos clínicos mostrados no filme são apenas um recorte que ratifica com clareza esse cenário.

Mas será que a psicanálise pode dar conta dos dilemas subjetivos da atualidade, principalmente da geração mais jovem? Eu acredito que sim, e testemunho os efeitos de uma análise a cada semana, há mais de uma década – com intervalos e pernadas de resistência, porque ninguém é de ferro e nem todo mundo dá conta dessa experiência o tempo todo. O que Freud inaugurou e hoje eu mesma e milhares de pessoas no mundo vivenciam é uma nova forma de olhar para si mesmo, para o outro, uma espécie de consciência da própria realidade interior. É também dar algum sentido para as dores da alma, independentemente da idade que se tem, e deslocá-las para um outro lugar que não traga tanto sofrimento. Um caminho longo e que provoca certo assombro num primeiro momento, mas que vai se construindo como um saber sobre si mesmo que não se apaga nunca. Os efeitos desse mergulho, dessa entrega ao inconsciente, são sutis, muitas vezes invisíveis, mas revolucionários. E eles nada mais fazem do que nos impulsionar para a frente, mesmo sem termos a certeza do que vamos encontrar.


Neste texto e para ir além:

Livro: Freud e o inconsciente, de Luiz Alfredo Garcia-Roza. 

Série: Em terapia, de Rodrigo Garcia.


Cristhiane Ruiz

Cristhiane Ruiz é editora, psicóloga e de vez em quando paralisa com medo de gatos que pulam.

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