
O documentário O cérebro dividido (2019), dirigido por Manfred Becker, mergulha em uma questão que vai muito além da neurociência: como o funcionamento do nosso cérebro influencia não só a vida individual, mas também, a cultura em que vivemos.
Baseado na teoria do psiquiatra e escritor Dr. Iain McGilchrist, o filme explora como os dois hemisférios cerebrais percebem o mundo de formas distintas. Por meio da biologia, da filosofia, da arte, da história e da política, ele defende que o lado esquerdo, analítico e fragmentador, passou a dominar nossa cultura, em detrimento do direito, que integra sentido e empatia. Para isso, o documentário intercala entrevistas com cientistas, filósofos, artistas e pacientes para mostrar como a forma que cada hemisfério usa para interpretar o mundo molda nossa forma de agir e de nos organizar em sociedade.

Lógica x Criatividade?
Durante décadas, repetiu-se o clichê: o hemisfério esquerdo seria lógico e racional; o direito, criativo e emocional. A película mostra que a realidade é mais complexa… e mais preocupante. Não se trata de funções estanques, mas de modos de se relacionar com a realidade.
O hemisfério esquerdo fragmenta, mede e categoriza. É útil para resolver problemas específicos, mas tem uma visão limitada. Já o direito percebe contextos, relações, significados mais amplos. É a parte que dá sentido e profundidade à experiência.
O alerta central do filme é que, ao longo da história recente, a sociedade ocidental entregou poder excessivo ao hemisfério esquerdo. Passamos a levar em consideração apenas a performance, valorizando métricas, eficiência e produtividade como se fossem absolutos, em detrimento da imaginação, da empatia e da espiritualidade.
Essa crítica não parece distante. Basta olhar ao redor: o culto à produtividade tóxica transforma dias em checklists intermináveis e, nas redes sociais, likes e métricas substituem conversas genuínas. No trabalho, muitas vezes somos pressionados a entregar rápido em vez de refletir com profundidade e conhecimento.

Até nossa atenção foi moldada: notificações constantes fragmentam o tempo e a mente, tornando difícil mergulhar em algo significativo. Quantas pessoas conseguem, hoje, assistir a um filme ou ler um livro sem checar o celular a cada cinco minutos ou duas páginas? Está aí o TikTok, uma das ferramentas que mais tem deixado nossa atenção fragmentada.
Esse desequilíbrio também aparece de forma evidente na educação. Como destaca McGilchrist, as escolas modernas seguem quase sempre o mesmo padrão: privilegiam conteúdos que reforçam o raciocínio analítico, a memorização e a avaliação por provas e notas (funções típicas do hemisfério esquerdo) enquanto reduzem o espaço para artes, música, filosofia e expressão criativa, que são campos mais ligados ao direito. O resultado é uma formação cada vez mais técnica e padronizada, mas que, muitas vezes, não prepara os alunos para compreender o mundo em sua complexidade, nem para cultivar empatia e imaginação.
Um reflexo disso é a relação dos estudantes com a tecnologia. Estudo liderado pelo Fluid Focus em agosto de 2025 mostrou que jovens passam em média 5h30 por dia nos celulares. O tempo aumenta com a idade: alunos do ensino médio têm média de 5h12, enquanto universitários chegam a 6h12. Apenas um em cada 25 estudantes consegue estudar por uma hora sem pegar o celular, e cerca de 40% verificam o aparelho a cada 5 ou 10 minutos. Esses números revelam não só a dificuldade de manter a atenção, mas também o quanto a cultura da fragmentação já está moldando a próxima geração.
Segundo McGilchrist, “muitas vezes a educação é a ingestão de informações, não é aprender a pensar de forma independente e crítica e em muitos níveis diferentes ao mesmo tempo.”

Quando a teoria é comprovada na prática
Um reflexo disso é a relação dos estudantes com a tecnologia. Estudo liderado pelo Fluid Focus em agosto de 2025 mostrou que jovens passam em média 5h30 por dia nos celulares. O tempo aumenta com a idade: alunos do ensino médio têm média de 5h12, enquanto universitários chegam a 6h12. Apenas um em cada 25 estudantes consegue estudar por uma hora sem pegar o celular, e cerca de 40% verificam o aparelho a cada 5 ou 10 minutos. Esses números revelam não só a dificuldade de manter a atenção, mas também o quanto a cultura da fragmentação já está moldando a próxima geração.
Segundo McGilchrist, “muitas vezes a educação é a ingestão de informações, não é aprender a pensar de forma independente e crítica e em muitos níveis diferentes ao mesmo tempo.”
Quando a teoria é comprovada na prática
É nesse ponto que o documentário toca também em algo profundamente pessoal para mim. Sempre tive uma tendência à procrastinação, e já sofri bastante com isso profissionalmente. Muitas vezes me pego preso no excesso de análise: dividir uma tarefa em microetapas, repassar mentalmente cada detalhe, buscar a forma “perfeita” de começar… e acabar paralisado.
Um episódio específico me marcou muito. Anos atrás, perdi a chance em uma vaga de emprego porque demorei demais para realizar a prova on-line do processo seletivo. Fiquei dias revisando mentalmente como faria, dizendo a mim mesmo que precisava estar no “estado ideal” para começar. Quando finalmente decidi fazê-la, já era tarde: o prazo tinha praticamente acabado, e não houve tempo para concluí-la. Oportunidade perdida, não por falta de capacidade, mas porque deixei o hemisfério esquerdo me prender na análise interminável, sufocando a ação.
A terapia foi essencial para que eu começasse a transformar esse padrão. Ali, entendi que procrastinação não é simplesmente “preguiça”, mas uma forma de me paralisar diante da pressão de performar bem. Aprendi a identificar quando estava entrando nesse ciclo e a usar ferramentas para sair dele: dividir tarefas de forma saudável, reduzir a autocrítica, ressignificar prazos e, principalmente, reconectar com o propósito por trás do que faço.
O mais curioso é perceber que essa luta íntima contra a procrastinação não é só minha: ela ecoa algo maior. Vivemos em uma época em que milhões de pessoas, apesar de estarem mais conectadas do que nunca, se sentem paralisadas ou vazias.

Uma epidemia que precisa ser controlada
A Organização Mundial da Saúde alertou recentemente que a solidão se tornou tão prejudicial à saúde quanto o fumo. Um em cada seis indivíduos vive esse sofrimento silencioso, especialmente jovens, que convivem com desconexão emocional apesar da hiperconectividade digital. O paradoxo é gritante: nunca estivemos tão conectados por telas, e, ao mesmo tempo, tão distantes em profundidade de vínculos reais.
Se no nível pessoal eu percebi como o excesso de análise pode me isolar da ação, no nível coletivo a sociedade parece sofrer algo semelhante. Ao valorizar apenas métricas e resultados (a lógica estreita do hemisfério esquerdo) acabamos transformando pessoas em números, relações em indicadores de performance e laços humanos em meras estatísticas. O que se perde nesse processo é o espaço da escuta, da imaginação, da empatia e do acolhimento, justamente as forças vitais do hemisfério direito.
É como se estivéssemos vivendo uma cultura em que produzir vale mais do que pertencer, e onde “fazer” tem mais prestígio do que “estar com”. Nesse contexto, a solidão deixa de ser apenas uma experiência individual dolorosa e passa a ser um sintoma social, sinalizando que algo está profundamente desbalanceado na forma como organizamos nossas vidas e prioridades.

McGilchrist, no entanto, nos lembra que esse descompasso não é apenas um fenômeno contemporâneo: ele se repete ao longo da história. O documentário mostra que quando sociedades permitem que a lógica fria do hemisfério esquerdo se sobreponha, não apenas relações pessoais sofrem, mas a própria vitalidade coletiva é corroída. É a partir dessa perspectiva que ele reforça sua tese com exemplos históricos e culturais.
Visões diferentes que se complementam
No filme, o psiquiatra argumenta que civilizações florescem quando há equilíbrio entre as duas partes do cérebro, mas entram em declínio quando o hemisfério esquerdo se impõe. Para ele, períodos de grande criatividade, como o Renascimento, só foram possíveis porque havia espaço para a imaginação, a arte e o pensamento holístico. Já épocas marcadas por excesso de racionalidade fria, como certos momentos da Revolução Industrial, revelariam os riscos de uma visão de mundo reduzida a números e engrenagens.
Nem todos, no entanto, concordam com McGilchrist. O documentário dá voz a especialistas que veem sua proposta como uma metáfora poderosa, mas não uma explicação científica definitiva. Neurocientistas mais céticos lembram que o cérebro é altamente interconectado e que não existe uma divisão tão clara entre funções de cada hemisfério. Para eles, a força da teoria estaria mais em seu valor filosófico e cultural do que em evidências empíricas robustas. Outros entrevistados questionam se não estaríamos projetando no cérebro problemas que pertencem, na verdade, a estruturas sociais e políticas.

A esperança: o único caminho possível
No fim, o que o documentário deixa claro é que essa divisão não é apenas uma questão neurológica, mas um espelho da forma como escolhemos viver. A procrastinação, que tantas vezes me paralisou, e que aprendi a enfrentar na terapia, é, em escala íntima, a mesma dificuldade que vemos em sociedades inteiras: o predomínio do cálculo sobre o sentido, da análise sobre a ação, da eficiência sobre a imaginação.
McGilchrist nos convida a enxergar que não se trata de demonizar o hemisfério esquerdo nem de idealizar o direito. Precisamos de ambos. É a lógica que organiza, mas é a intuição que dá rumo. É a análise que detalha, mas é a imaginação que dá profundidade. Uma civilização, assim como uma vida individual, só floresce quando essas duas forças dialogam.
Se há algo que O Cérebro Dividido nos pede é justamente isso: recuperar a conversa entre as metades, reaprender a pensar e a sentir com o cérebro inteiro. Essa talvez seja a tarefa mais urgente do nosso tempo, não apenas para sermos mais produtivos, mas para sermos mais humanos. Como diz o dr. Iain McGilchrist: “Trata-se de toda a forma como concebemos o que é um ser humano, o que é o mundo e qual a nossa relação com ele.”
E a pergunta que fica, para cada um de nós, é inevitável: qual dos hemisférios temos alimentado mais em nossa própria vida?
Neste texto e para ir além:

Documentário: O cérebro dividido, na aquarius

Peça: Esperando Godot, de Beckett

Livro: Rápido e devagar: Duas formas de pensar, de Daniel Kahneman
