
Conhecer a história é um negócio importante, sugere o clichê, porque ainda é a forma mais eficaz e segura de não cometermos os erros do passado. É claro que nada é tão simples, e que cada contexto sempre guarda em si determinadas particularidades que o tornam único. Então é meio bobo, além de cientificamente inexato, ficar à procura de padrões de repetição na História, ou de coisas que acontecem, ou que poderiam acontecer, com a mesma regularidade, sei lá, das leis da Física. Não é assim que a banda toca.
No entanto, ainda não inventaram nada melhor para compreender o mundo em que vivemos, seja sob o ângulo que for, do que examinar as coisas sob perspectiva histórica. Essa sempre foi, ainda é e continuará sendo por muito tempo a melhor vacina contra os obscurantismos que, de tempos em tempos, surgem na política, na cultura e no diabo a quatro.
A Força e a Razão é um diálogo de 43 minutos entre o cineasta italiano Roberto Rossellini e Salvador Allende. Pouco depois o presidente chileno seria deposto num golpe de estado patrocinado pelos EUA. Um esporte muito praticado entre os anos sessenta e setenta na América Latina, é bom lembrar.
A entrevista foi dirigida pelo próprio Rossellini, com o auxílio de Emídio Greco, e foi exibida pela TV italiana na noite de 15 de setembro de 1973, após a notícia da morte do presidente chileno. O bate-papo é todo ele conduzido num clima amistoso. Já no início, Rossellini declara a sua simpatia, pessoal e ideológica, a Allende. Ao longo da conversa assistimos a variações dessa dinâmica entre os dois: Rossellini levanta, Allende corta.
Uma trajetória popular, mas pouco ortodoxa

O presidente chileno tinha suas origens na burguesia local. Seu pai e seus tios pertenciam ao antigo Partido Radical, a principal oposição aos conservadores entre o final do século 19 e as primeiras décadas do século 20. Seu avô havia sido eleito senador pelo partido, além de vice-presidente do Senado e o responsável pela criação da primeira escola laica no Chile.
Allende saiu da cidadezinha onde morava para cursar faculdade de medicina em Santiago. Foi nessa época que teve contato com literatura marxista e grupos de discussão do assunto. O exercício da medicina sempre se confundiu com seu ativismo político e sua agenda social.
Na entrevista, Rossellini se mostra admirado com a vitória de Allende em 1970, um momento em que todo o aparato de comunicação chileno, jornais e estações de rádio, sobretudo, estavam concentrados nas mãos da elite conservadora nacional. O entrevistado, entretanto, explica que a sua vitória devia ser compreendida como a consequência de um processo iniciado lá atrás — “Eu fui candidato quatro vezes”, recorda.
Allende havia integrado o Partido Socialista, que o expulsou de seus quadros devido a críticas à ortodoxia de seu programa. Na sequência, entrou em contato com o Partido Comunista, que, na época, estava na clandestinidade. Foi aí que nasceu o embrião da Unidade Popular, uma união incomum entre socialistas e comunistas.
Em 1951 Allende atravessou o Chile, de ponta a ponta. Não com uma perspectiva eleitoral, mas porque queria mostrar ao povo que a única forma de derrotar a extrema direita era com uma aliança entre o operariado e a pequena burguesia.
Esse projeto iniciado no começo da década de 1950 ganhou força e amplitude em 1958, quando disputou as eleições e perdeu por apenas 30.000 votos. Em 1964 foi derrotado mais uma vez, mas por uma conjuntura atípica: os conservadores se aliaram à extrema direita, no apoio à candidatura de Eduardo Frei, e conseguiram dessa forma obter sucesso eleitoral.
Acontece que Allende se preocupou em criar ao longo dos anos, de modo orgânico e de baixo para cima, um movimento democrático envolvendo a ala progressista da política institucional e partidária chilena, por um lado, e os setores populares da sociedade civil, no outro. Nada muito diferente daquilo que, aqui no Brasil, Mano Brown recomendou que o Partido dos Trabalhadores fizesse em 2018, quando aconselhou que a agremiação desse atenção “às bases”.
Allende abriu um canal de diálogo, aberto e transparente, através de comitês, com as pessoas nas ruas, nas fábricas, nos liceus, nas indústrias e nos hospitais. “Esses comitês foram os veículos, os contatos e os tentáculos do pensamento da Unidade Popular na sua ligação ao povo”, explica.
Democracia e ruptura

Tem uma hora em que Rossellini pergunta sobre o resultado das eleições de 1958, quando a derrota de Allende, por uma margem tão pequena de votos, gerou um debate em certos setores da esquerda chilena sobre a legitimidade do processo eleitoral. No momento mais crítico, Carlos Ibáñez, o presidente que estava sendo sucedido, chegou a expressar o seu desejo pela posse de Allende.
Allende, entretanto, optou por acatar os resultados daquela eleição. Esse é um desdobramento interessante, uma vez que, meio século depois, formou-se um consenso na literatura de Ciência Política de que uma das primeiras red flags de ruptura democrática é o momento em que um candidato ou partido contesta a legitimidade dos resultados do sistema eleitoral no qual ele mesmo compete.
Não foi pela rigidez de seu legalismo, nem tampouco devido às suas credenciais democráticas, que Allende não questionou o resultado das eleições de 1958, mas por conta de um punhado de razões pragmáticas: o único apoio que havia recebido para assumir a presidência, dentro daquele contexto, vinha do Partido Comunista, clandestino até a medula, e, para completar, o seu próprio partido não tinha sequer a maioria no Congresso.
Como candidato derrotado, tinha a certeza de que se naquele momento botasse pilha na população a seu favor, haveria uma repressão violenta por parte do Estado, como consequência direta.
Ao longo da conversa, o político explicou a Rossellini a importância da soberania econômica chilena e de sua autodeterminação política, num contexto de trocas comerciais desiguais com o Norte industrializado. Também defendeu sua agenda de nacionalizações de setores estratégicos, falou sobre as principais diferenças entre o seu partido e os democratas-cristãos, e mencionou ainda a relação amigável que seu governo havia conseguido costurar com a Igreja Católica.
Democracia e ruptura
A Força e a Razão funciona em pelo menos dois planos distintos. Em primeiro lugar, como um documento histórico valioso. É a oportunidade rara de assistirmos a duas das maiores inteligências, artística e política, do século passado, em diálogo franco e aberto sobre algumas das questões mais relevantes de sua época e da nossa.
Em segundo lugar, porque a conversa entre Roberto Rossellini e Salvador Allende funciona como o guia de um modelo criativo de trocas intelectuais entre centro e periferia. Quer dizer, é o cineasta italiano quem escuta e quem aprende, sempre com curiosidade e atenção, o que o político latino-americano tem a lhe dizer e informar.
Por esse e por outros motivos, A Força e a Razão não apenas permanece com o mesmo frescor que tinha em 1973, como talvez a História, sempre ela, tenha lhe tornado uma obra um bocado mais urgente e vanguardista do que já era, há mais de meio século, no momento em que surgiu.
Neste texto e para ir além:

Documentário: A força e a razão
