
Um racionalista francês que “suspeita até de sua própria sombra” devota sua vida aos mistérios do candomblé. Um jovem que queria ser um playboy em Paris se tornou, nas palavras de Jorge Amado, “o mais baiano dos franceses”. As contradições nunca foram limitantes para o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger.
No documentário “Pierre Fatumbi Verger – Mensageiro entre dois mundos”, Gilberto Gil mergulha na vida do amigo. Os mundos de Verger se conectam para além das aparentes contradições.
São dois mundos metafísicos. O mundo espiritual encontra acolhida em seu olhar racional. Dessa equação, surge a obra de um dos mais importantes retratistas do universo afro-brasileiro. Fotografias em movimento, ao ar livre, que retratam o cotidiano dos negros e negras. Mais do que isso: sua obra, vista em perspectiva, mostra os elementos que ligam os ancestrais rituais africanos à cultura dos terreiros da Bahia.

São dois mundos geográficos. O mundo da nobreza francesa se conecta com a terrível realidade dos escravos. Dessa equação, surgem livros importantes como “Dieux d’Afrique”, publicado em 1954, em que descreve os orixás. E “Fluxo e Refluxo”, obra tão importante que lhe rendeu o título de doutor pela Sorbonne.
Num determinado momento do filme, Verger dissolve as aparentes contradições entre a razão e as crenças religiosas: “Impressiona-me o que essa religião é capaz de fazer para descendentes africanos. Quando conheci Balbino (pai-de-santo do terreiro Axé Opô Aganju, em Salvador), ele nem sabia ler, mas era um sujeito contente de si, não se sentia humilhado com ninguém e falava de igual para igual com qualquer um, porque é filho de Xangô”.

Aos mundos de Pierre Verger, o diretor Lula Buarque de Holanda acrescenta mais uma camada: os mundos de Gilberto Gil, outro apaixonado pela ressignificação das contradições.
Em nome dessa amizade cheia de elementos em comum, Gil embarca, com prazer, numa viagem por Benim, na África, que refaz alguns passos importantes da trajetória do fotógrafo e etnólogo. Mais do que um documentário biográfico, o filme repassa o legado de Verger pelos olhos poéticos de Gil.

Gil conversa com várias pessoas que relatam a relação de confiança entre Verger e Mãe Senhora. Não à toa, Mãe Senhora proclamou-o Oju Obá (que significa) “os olhos de Xangô” ou “aquele que tudo enxerga e tudo sabe”. Ciente de sua sina e mensageiro, Verger sentiu a necessidade de ir a Benim, na África. E Mãe Senhora consentiu.

Foi em Benim que o francês renasceu graças ao culto religioso. Incorporou o nome “Fatumbi” que, em iorubá, significa “nascido de novo graças ao Ifá”. Gil acompanha os locais onde Pierre Édouard Léopold Verger virou Pierre Fatumbi Verger. O filme também mostra o ifá, uma leitura a partir de pedras sagradas que guarda uma familiaridade distante com o jogo de búzios. Ao refazer os passos do amigo, Gilberto Gil também é transformado.

Uma conversa entre os dois aparece em flashes. Sempre em preto e branco, como nas fotos de Verger. Falam sobre os encantos da Bahia, sobre o candomblé. Ciente da resistência racionalista do amigo, Gil pede uma explicação sobre o transe provocado pelas incorporações de orixás. “Para mim é uma manifestação da verdadeira natureza da gente. Uma possibilidade de esquecer todas as coisas que não têm nada a ver com você. Fica uma pessoa como era antes de aprender essas ‘estupidezas’ de nacionalidades e outros comportamentos”. Gil pergunta se ele já teve um transe. E Verger responde: “Infelizmente não. Porque sou um idiota de francês racionalista. É uma coisa ‘despoetizante’, horrível. Eu sofri muito, gostaria de me deixar ir”.
Pierre Fatumbi Verger morreu no dia seguinte à entrevista, dia 11 de fevereiro de 1996, de insuficiência cardíaca.
Além de Jorge Amado, Verger inspirou Gilberto Gil, Caetano Veloso e foi enredo da escola de Samba União da Ilha do Governador em 1998. “Eu e Verger tínhamos muita coisa em comum. Uma delas era a procura de um conhecimento maior e mais profundo sobre a cultura negra”, disse Gil numa entrevista ao jornal O GLOBO em 1997.

Caetano já disse em entrevistas que escreveu os versos iniciais de “Milagres do Povo” inspirado numa entrevista de Jorge Amado. O escritor dizia que era um ateu que presenciou milagres. A linda letra da música, tão aderente à obra de Pierre Verger, faz acreditar que Caetano se refere ao amigo fotógrafo como Oju Obá.
Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar
E o coração que é soberano e que é senhor
Não cabe na escravidão, não cabe no seu não
Não cabe em si de tanto sim
É pura dança e sexo e glória
E paira para além da história
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Xangô manda chamar, Obatalá guia
Mamãe Oxum chora lagrimalegria
Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Obá
É no xaréu que brilha a prata luz do céu
E o povo negro entendeu que o grande vencedor
Se ergue além da dor
Tudo chegou sobrevivente num navio
Quem descobriu o Brasil?
Foi o negro que viu a crueldade bem de frente
E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia

