Por Caroline Apple
Machista, preconceituoso, arrogante, prepotente, vaidoso, cético, homofóbico, violento e rígido. Assim que o instrutor de yoga Kurt Maciel, de 40 anos, se define antes de passar pelo que ele chama de despertar espiritual.
Kurt foi militar em São Paulo por 18 anos antes de se dar conta de que sua forma de viver estava o levando, literalmente, para a morte. “Perdi as contas de quantas noites passei sem dormir, quantas questões perturbadoras eu tive a respeito da minha masculinidade, além de incontáveis relacionamentos vazios, superficiais e voltados somente ao prazer e à luxúria. Os desafios foram extremos e me levaram ao limite da minha sanidade, pensava em suicídio constantemente”, conta o iogue.
O momento da mudança
Porém, Kurt viveu o fenômeno do chamado despertar espiritual em 2013 durante um retiro de oito dias com ayahuasca. Lá, o então policial acessou de forma clara tudo que o estava adoecendo e percebeu que sua profissão estava contribuindo diretamente para o quadro que se apresentava de forma patológica. Porém, Kurt não saiu imediatamente da Polícia, viveu o que ele chama de “inferno de insatisfação” e a contradição de ora carregar nas mãos uma arma calibre .40, ora estar com as mãos em prece ou em mudras durante a prática e a formação de yoga que decidiu fazer após sua imersão no mundo espiritual.
Foi somente em 2018, cinco anos depois do despertar espiritual, que o então policial militar e iogue mudou completamente sua vida. Em janeiro daquele ano, Kurt sofreu um grave acidente de carro e teve uma EQM (Experiência de Quase Morte), que o levou a embarcar para a Índia em uma jornada espiritual.
Após essa experiência no Oriente, enfim, o policial iogue pediu a exoneração da Polícia Militar e começou a viver de uma forma que jamais havia imaginado, imerso na caminhada do autoconhecimento e da espiritualidade e colaborando com os processos de outras pessoas que têm o mesmo propósito.
Esta é apenas uma das histórias de transformação que se encontra em espaços como igrejas, templos, centros, terreiros e qualquer outro lugar onde se realizam estudos sobre as espiritualidades. Muitas pessoas trazem consigo pontos de virada de chave revolucionários que mudaram a forma delas estarem na vida a partir do que consideram um despertar espiritual. Os eventos vividos são diversos, mas é comum ouvir relatos de sensações físicas diferentes, de vivência de situações inexplicáveis, de sonhos premonitórios, crises existenciais profundas, experiências transcendentais e uma evidente necessidade de mudar de vida, mesmo não sabendo por onde começar. Há, inclusive, sites na internet que trazem listas de “sintomas” de um despertar espiritual.
Mas, afinal, do que se trata esse fenômeno?
O blog da Aquarius conversou com pessoas de diversas religiões, filosofias e espiritualidades para entender um pouco mais dessa experiência que tem se tornado cada dia mais comum nos dias de hoje.
Veja os depoimentos:
Viver sem expectativas e julgamentos
“Despertar espiritual para mim é consciência sem expectativas e julgamentos, com o amor sendo a base da vida. Eu acredito no meu coração e na minha intuição. Acredito no meu aprendizado com o Bhagwan [Osho], ele me ajudou, com meus pais, a ser eu mesma.”
Ma Anand Sheela – ex-secretária pessoal e porta-voz do guru indiano Osho.
Sentir alegria com essa existência
“O despertar espiritual é aqui e agora. É a gente se dar o direito de pensar um pouco melhor e buscar pensamentos evolutivos e capazes de fazer a gente perceber que coisas boas também estão acontecendo. O despertar espiritual é a gente viver e sentir o verdadeiro sentido da vida e se alegrar pela grande possibilidade de se encontrar aqui. Nessa esfera material dentro de um planeta tão bonito, com uma honrosa oportunidade para viver e evoluir. O despertar espiritual é a gente sentir alegria com essa existência que estamos vivendo, porque, afinal de contas, que moral é que nós temos de pedir uma oportunidade para viver a vida espiritual se nós não conseguimos nos alegrar com essa que já estamos exercendo? Portanto, para todos, um bom despertar espiritual.”
Saturnino Brito do Nascimento – padrinho e presidente do CEFLI (Centro Eclético Flor do Lótus Iluminado), linha do Santo Daime
Agir com discernimento
“O despertar espiritual para mim é agir com discernimento. O discernimento é um dom do Espírito Santo segundo a fé cristã, segundo a visão católica. Então, o Espírito Santo leva a discernir os sinais do tempo e ter critérios para agir. O despertar espiritual é estar atento, de olhos abertos, comprometido e discernindo os caminhos a tomar em cada momento.”
Júlio Renato Lancellotti – presbítero da Igreja Católica, pedagogo e coordenador da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo
Reencontrar-se consigo
“Para nós de Candomblé, um despertar espiritual tem a ver com retorno. Então, despertar para a espiritualidade é retornar para si mesmo, para si mesma. É um reencontrar-se. Não há dúvidas de que, desde que nascemos, nós somos arrancados de nós. São muitos os ruídos, são muitas as projeções sobre nós, são muitos os padrões culturais, as colonialidades, a manifestação do colonialismo, o poder do universalismo, que quer nos tornar tudo, uma coisa só, todos iguais. Todos padronizados e a cultura de terreiro, de candomblé, ela é uma cultura da natureza. A natureza é diversa, você tem todos os tipos de plantas, de árvores, diferentes tipos de terra, diferentes manifestações da água, como nascente, como córrego, como rio, como queda d’água, cachoeira, como represa. Então, é nesse sentido que está a ideia central do candomblé.
Nós somos diversos, nós somos plurais, e reencontrar-se com a sua espiritualidade é reencontrar-se consigo mesmo. Então, um despertar para a espiritualidade traz para nós o nosso real tamanho e diz: ‘Olha. Este é você. Este é o seu verdadeiro eu. Esta é a sua essência’. O despertar para a espiritualidade tem a ver com essência. Tem a ver com algo essencial, com algo originário, com algo anterior às diversas camadas que vão sendo compulsoriamente impostas sobre nós. O despertar para a espiritualidade tem a ver com cura. Tem a ver com saúde, tem a ver com alegria, com felicidade, tem a ver com uma possibilidade existencial. É sobre existir também, despertar para a espiritualidade, é despertar para a sua própria existência.”
Sidnei Nogueira – babalorixá, palestrante, arte educador, escritor, influencer e comunicador
Reconhecer o mundo metafísico
“Nossa geração é chamada a Geração do Despertar. Combinamos muitos conceitos da ciência, da biologia, revelações que podem ajudar todo mundo a entender uma dimensão que é além do tempo, além do espaço, que no começo, claro, é um pouco difícil. Minha primeira reação, como a muitas pessoas, é pensar que perdendo a sanidade, que ficando louco. Isso porque as coisas vão além do físico, e isso no começo dá um susto. A gente não está acostumado com vivências assim. Então o despertar realmente é um salto quântico onde a gente pula ou dá um salto bem profundo para sair das influências físicas e da nossa percepção física da realidade. A partir dali começa uma percepção ‘nova’, que, na verdade, é a visão mais antiga que existe e mais real, percebendo que o mundo físico realmente é um mundo de ilusão, temporário, enquanto a realidade verdadeira que todo mundo está procurando não se encontra no mundo físico, mas sim nas dimensões metafísicas.
Toda a minha visão, minha percepção da vida mudou. E assumi a missão da minha alma de continuar a estudar Kabbalah e ensiná-la para mais pessoas. A salvação não vai vir de fora, de Deus, do anjo. A salvação vem de dentro e todos os nossos mestres nos ensinam exatamente esse caminho, oferecendo ferramentas para que o discípulo aprenda como se salvar e começar a assumir responsabilidades sobre as próprias decisões e consequências dos atos. Isso segue a lei de causa e efeito. Toda a percepção muda. E isso traz um sentido maior da vida.”
Joseph Saltoun – Mestre de Kabbalah, rabino e autor
Acessar a realidade aqui e agora
“Despertar espiritual é uma única coisa, uma única realidade. Despertar é acordar, acordar para a vida. Espiritualidade é o cultivo de uma mente sadia. Logo, a gente só desperta para a vida com uma mente sadia. Acordar, sair da sonolência, do sonambulismo que nós vivemos, envolvidas e envolvidos com os nossos pensamentos, carregados de apegos, aversões e desejos que atropelam a tudo. O desejo é importante, mas que seja um desejo que nos mobiliza para o autoconhecimento. Espiritualidade, essa aventura, do autoconhecimento. E assim despertar. Despertar significa Buda. Buda em sânscrito significa despertar, desabrochar. Despertar espiritual, acordar em contentamento com a existência, sendo a nossa respiração, essa vida incessante a cada momento consciente. Consciente de que intersomos com tudo que existe. Nós só existimos porque dependemos de tudo que existe. Despertar espiritual é acessar essa realidade aqui e agora.”
Heishin Gandra – monja do Centro Budista Soto Zen Daikanshin Zendo Ibiúna Campininha Zen
Entregar-se ao divino
“O despertar espiritual na visão do muçulmano é uma jornada profunda de conexão com Allah (الله) Subhanahu wa ta’ala (Deus o Altíssimo). É uma busca incessante pela verdade e uma entrega total à vontade divina. É um chamado para transcender as limitações do ego e mergulhar na adoração sincera, encontrando paz e propósito na submissão a Allah (الله) Subhanahu wa ta’ala (Deus o Altíssimo). É a busca pela purificação da alma, pelo equilíbrio entre o mundo material e espiritual, pelo amor incondicional a Allah (الله) Subhanahu wa ta’ala (Deus o Altíssimo) e aos seus servos. É uma jornada de autoconhecimento, de contemplação dos sinais divinos presentes na natureza e nos corações dos seres humanos. É a realização de que somos todos parte de um todo maior, conectados por laços de fraternidade e compaixão. O despertar espiritual é a luz que ilumina o caminho do muçulmano, guiando-o para uma vida de retidão, justiça e benevolência. É a chave para desvendar os mistérios da existência e encontrar a felicidade duradoura neste mundo e no próximo. Que Allah (الله) Subhanahu wa ta’ala (Deus o Altíssimo) nos facilite essa busca e que nos dê alicerce no melhor do saber para a sabedoria benéfica aos nossos e nossas iguais.”
César Kaab Abdul – presidente e fundador da Mesquita Sumayyah Bint Khayyath e do CEDIB (Centro de Estudos e Divulgação do Islam no Brasil e diretor do Centro Cultural Islâmico de São Paulo
Servir com amor
“De acordo com as escrituras sagradas da Índia, os Vedas, o despertar espiritual acontece quando a entidade viva, o Eu, entende a sua verdadeira natureza, a natureza desse mundo e a natureza de Deus e a relação que existe entre esses três. E para alcançar esse despertar, o primeiro passo é se aproximar de um mestre espiritual, o que as escrituras chamam de Guru.
Assim como tudo que a gente quer aprender, a gente precisa se aproximar de alguém que detém aquele conhecimento, para alcançar um conhecimento espiritual, uma realização espiritual, também é necessário se aproximar de um mestre espiritual. E quando a gente inicia esse despertar, naturalmente a gente vai ter contato com o mestre espiritual e aí nós vamos começar a indagar sobre todas essas coisas: Quem é Deus? Quem somos nós? O que é esse mundo? E o mestre espiritual nos inicia no processo para o despertar espiritual.
Esse processo nos Vedas se chama Bactiioga. Ou seja, ioga quer dizer conexão e bacti quer dizer devoção: serviço amoroso devocional. Então é a conexão com Deus através do serviço amoroso devocional. Então esse é o processo para se alcançar um despertar espiritual quando você pratica o Bactiioga sob a guia de um mestre espiritual você alcança o despertar espiritual. Esse assunto é muito vasto processo e tudo vai depender da sua entrega. Então ele pode ser um processo muito longo, se você vai se entregando aos pouquinhos, devagar, ou ele pode ser um processo rápido.
As pessoas que são renunciadas, os renunciantes, retirantes, são pessoas que alcançam o despertar espiritual mais rapidamente, justamente porque elas desapegam muito mais rápido, elas se entregam muito mais rápido. Mas cada um tem o seu processo e cada um tem o seu mestre espiritual. E aí, de acordo com as instruções do mestre espiritual, a gente vai dando passos precisos e eficazes no caminho espiritual. Mas, em resumo, para nós, Hare Krishnas, não existe despertar espiritual sem a associação sem a companhia de um mestre espiritual fidedigno é aquela personalidade que realizou todo o conhecimento espiritual e que ela prega através do próprio exemplo.”
Prana Kisori Devi Dasi – 20 anos adepta do Vaisnavismo, religião conhecida como Hare Krishna.
Sensibilizar-se com a dor do outro
“Despertar significa acordar, perder o sono, deixar o estado de dormência. É nesse movimento individual que a fé nos impulsiona para o movimento que deve ser social e coletivo. Movimentar-se pressupõe sair da bolha dos nossos privilégios e compreender que a fé não pode ser uma prática alienada das pautas sociais que movimentam a sociedade. Se deixamos um estado de dormência porque uma força espiritual nos acordou, é porque podemos e devemos fazer algo a partir da nossa vivência, independente da fé que professamos. A fé deve, a todo momento, ser canal da sororidade que atravessa a condição humana.
O despertar espiritual não pode ficar restrito à nossa experiência individual, mas sim por todo o mundo e fazer a diferença na vida e nas pautas que ainda nos são muito caras. Esse movimento vai na contramão de um despertar espiritual que nos prende a ritos e dogmas e nos tornam pessoas insensíveis a dor do outro. Se eu sou uma pessoa cisgênera e não sinto a dor que a transfobia causa na vida das pessoas trans e travestis, não posso dizer que despertei para o mundo espiritual. O mundo espiritual deve ser aquele que nos orienta e nos impulsiona na luta contra toda forma de injustiça e morte. Se não doer em mim a dor do racismo, da misoginia, do sexismo, da LGBTIfobia, significa que ainda estou dormindo. Estar dormindo frente ao massacre da comunidade indígena, da não acessibilidade das pessoas com deficiência nos mais diversos espaços sociais e de tantas outras atrocidades contra grupos historicamente perseguidos e invisibilizados, diz muito da fé que professamos.
Despertar espiritualmente é não ter medo de denunciar todas as formas de opressão e morte. É fazer acontecer o Reino de Deus aqui e agora e não para depois da morte como recompensa de uns em detrimento de outros. Despertar é chorar junto com a mãe negra que enterra seu filho que foi assassinado por uma necropolítica que quer exterminar a juventude negra deste país. Acordar é ouvir o barulho das metralhadoras que alcançam as nossas crianças dentro de suas casas. Sair da dormência e perceber que somos o país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo. Uma vez despertados, acordados e atentos, podemos tornar real e materializar os valores espirituais de paz, amor, equidade, justiça e liberdade.”
Alexya Salvador – reverenda clériga ordenada pelas Igrejas da Comunidade Metropolitana e vice-presidenta da EIG – Evangélicas Pela Igualdade de Gênero
Reativar forças ancestrais
“O despertar espiritual é um encontro de seres ancestrais de grande poder que temos a oportunidade de acessar para resgatar essa força para reativamos ela em nós, juntos, em um só corpo. Encontramos seres encantados com poder de cura energética. O despertar espiritual é a conexão com seres encantados.”
Rana da Cruz – liderança espiritual Kariri-Xocó de Alagoas
Transformação une conceitos
Mesmo diante de opiniões vindas de pessoas com credos, religiões, dogmas e espiritualidades diferentes, há uma amálgama que conecta todas as narrativas que é a da transformação. Aparentemente, ninguém sai “ileso” de um despertar espiritual, que, por fim, se apresenta como um ponto de virada e de tomada de consciência sobre a forma que se sente e vive a vida. Essa experiência se torna um ponto de partida para uma série de mudanças internas que reflete na forma de sentir e de viver das pessoas que passam por essa experiência.
Caroline Apple
Jornalista, palestrante, colunista e influenciadora digital especializada na produção e gestão de conteúdo digital e reportagens em diversas editorias, principalmente Direitos Humanos, políticas de drogas e causa indígena.
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Adorei o tema, as entrevistas e os pontos C de vista de cada um. Pessoalmente acompanho o Rabino Joseph Saltoun ha 15 anos, além de estar ligada a Fraternidade Branca há mais de vinte.
Realmente nos transformamos e estamos sempre em transformação neste caminho do despertar espiritual.
Gratidão! 🙏🏽
Muito interessante o tema abordado por todos!O MESTRE JOSEPH SALTOUN sempre enfatiza: a Kabbalah é a linguagem da União
Muito bom ver como esse conceito muda de pessoa para pessoa, e como dá pra tirar algo proveitoso de cada um deles.