
Recentemente assisti aos quatro vídeos do Dr. Gabor Maté que entraram há pouco, ainda no mês de agosto, na plataforma de streaming da Aquarius: “Psicodélicos: Quais São as Propriedades Curativas de Diferentes Psicodélicos?”; “Psicossomática: Entendendo o Verdadeiro Significado da Doença”; “Sociedade: Desvendando o Mito da Normalidade” e “Trauma: Entendendo as Feridas Dentro de Nós”.
Até então só tinha ouvido falar a respeito, e lido por alto uma coisa ou outra, mas assistir ao homem em ação, diante de uma audiência inquisitiva e curiosa, muda absolutamente tudo de figura: em menos de cinco minutos você entende o apelo do sujeito. Hoje sua conta no Instagram possui 2.9 milhões de seguidores e, como o Guardian escreveu na resenha de seu livro mais recente, “seu impacto é o de um rockstar, mas um rockstar do tipo cerebral — está mais para Leonard Cohen do que para Justin Bieber”. Cá pra nós, é uma baita definição.
Gabor Maté é um médico diferente: é um intelectual público com status de celebridade. Autor de inúmeros best sellers de divulgação científica, é conhecido por sua abordagem humanista e iconoclasta na qual enfatiza os aspectos psicológicos e sociais das doenças autoimunes, além, claro, de sua relação com o trauma. Na sua definição, trauma não é o que acontece conosco, mas “o que acontece dentro de nós como resultado do que acontece conosco”. Mal comparando, não é a pancada na cabeça, mas a própria concussão.
Ainda que muitas vezes ande como um guru de autoajuda, fale como um guru de autoajuda e soe como um guru de autoajuda, Gabor Maté é alguma coisa além disso e certamente mais complexa do que isso. É alguém que oferece não somente conforto espiritual, mas genuína sabedoria aliada à coragem moral de formular as perguntas certas para nossos tempos incertos.
“Tudo é psicossomático”
Para Gabor, quando alguém qualifica uma dor como “psicossomática”, o que ela provavelmente está sugerindo é que ela é “irreal”, ou apenas “imaginada”. No entanto, para o médico canadense “tudo é psicossomático”. Se a “psique” são nossas emoções e espírito, e “somático” o nosso corpo, faz mais sentido pensar na unidade de ambos, do que em sua dualidade e separação. É importante aceitar que há uma relação entre aquilo que sentimos e as manifestações físicas desses sentimentos e emoções.
É interessante o caso de John Sarno, famoso médico norte-americano especialista em coluna, que, ao longo de anos do exercício de sua profissão, notou que os pacientes que o procuravam com dores nas costas invariavelmente reprimiam muita raiva. No entanto, assim que lidavam com suas emoções, a dor desaparecia.
Para Gabor Maté, a comunidade médica, por conta de limitações do seu próprio viés de formação, muitas vezes ignora a relação quase sempre direta entre doenças autoimunes e trauma, em que pese a existência de evidência científica em abundância apontando nessa direção.
Trauma e conexão humana
Durante a Segunda Guerra, quando a Força Aérea Alemã bombardeava Londres, o governo britânico realocou algumas crianças da capital para o interior, para que ficassem temporariamente sob os cuidados de outras famílias, a fim de protegê-las dos ataques. Outras crianças permaneceram em Londres, onde havia a violência e o caos dos ataques aéreos, mas em compensação podiam contar com o cuidado de seus pais e não de adultos estranhos.
Alguns anos depois, quando médicos e psiquiatras examinaram os dois grupos, constatou-se que o segundo estava mentalmente mais saudável do que o primeiro. O que nos protege do trauma, Gabor conclui, “é a conexão humana”.
Assim como Alice Miller, a famosa psicoterapeuta especializada em desenvolvimento infantil, afirmava: o que determina que duas crianças vivenciem externamente o mesmo tipo de experiência de estresse emocional, mas apenas uma saia traumatizada, é a presença ou ausência daquilo que chamou de “testemunha empática”. Em outras palavras, alguém “que talvez não consiga proteger a criança de absolutamente todos os problemas, mas que pelo menos possa escutá-la e validar seus sentimentos”.
O vício como resposta traumática
A abordagem de Maté com relação aos vícios também é interessante. Segundo ele, o vício jamais é o problema primário, mas sim uma tentativa mais ou menos precária de escapar desse problema. Por sua própria natureza, traz alívio no curto prazo, como uma espécie de autogratificação instantânea, mas inúmeros problemas no longo. Nesse sentido, os vícios podem ser interpretados como um dispositivo humano de defesa: basicamente a tentativa de fuga de um trauma, por incapacidade ou medo de elaboração.
Patriarcado e colonialismo
Muitos povos indígenas da América do Norte se organizavam socialmente a partir de uma lógica matriarcal. O que implica afirmar que “a sabedoria, o conhecimento e a autoridade eram passados através de uma linhagem feminina”. Todavia, quando os britânicos chegaram ao Canadá, uma de suas primeiras ações foi tornar ilegal a transmissão matrilinear da autoridade.
Há uma ligação direta entre o colonialismo e um sistema ideológico baseado na opressão das mulheres. A imposição colonialista do patriarcado, Gabor argumenta, gerou como consequência uma incidência cada vez maior de doenças autoimunes, como por exemplo a artrite reumatoide, na população feminina indígena — algo até então praticamente inédito. Atualmente uma mulher indígena no Canadá tem seis vezes mais chance de contrair essa doença do que qualquer outro grupo demográfico no país. Gabor não usa a expressão “feminismo”, mas “realismo”.
Uma cultura tóxica
Segundo o médico canadense, vivemos em uma cultura tóxica. Uma cultura que devido à “sua própria natureza, fere as pessoas”. Nesse contexto, muitas das doenças que observamos hoje podem ser interpretadas como respostas naturais a uma situação de anormalidade social.
Nossa evolução como sociedade seguiu uma lógica de cooperação e associativismo, jamais a atual competição de um contra todos. Qualquer sistema ideológico baseado na crença artificial de que o ser humano é egoísta e individualista, nega a necessidade humana básica por conexão.
O que a filosofia de Maté nos parece indicar é que enquanto insistirmos em individualizar problemas que possuem raízes estruturais profundas, e que portanto demandam saídas e respostas coletivas, permaneceremos como sociedade condenados a um eterno andar em círculos. Não parece um caminho muito auspicioso.
Assista aos episódios de “Recuperando Nossa Autenticidade” de Gabor Maté no canal da aquarius na Prime Video ou no app aquarius.

Gabriel Trigueiro é doutor em História Comparada pela UFRJ, colabora com críticas literárias e artigos de opinião para veículos como O Globo e Folha de São Paulo. Além disso, escreve quinzenalmente na newsletter nadadeerradonisso.substack.com
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