Escola Waldorf Guayi
O Paradoxo da Ação Coletiva
Vivemos em tempos em que o individualismo se destaca cada vez mais. As pessoas, impulsionadas pela necessidade de se afirmar e de encontrar seu lugar no mundo, muitas vezes priorizam suas próprias vontades e desejos. A valorização do “eu” tem se tornado central, e, com isso, o sentido do “outro” e do coletivo acaba, por vezes, ficando em segundo plano.
Para mim, as iniciativas sociais pareciam estar distantes do meu cotidiano. Porém, essa ideia ganhou forma concreta quando ingressei na gestão da escola associativa onde minha filha estuda. Essa dedicação é voluntária, portanto é uma doação do meu servir para o coletivo. E, cá pra nós, gerir uma escola não é tarefa fácil. Há pressões de todos os lados, cobranças que vêm de todos os ângulos. Recebo elogios, sim, mas também sou confrontada com críticas que, por vezes, questionam até mesmo as minhas intenções. E acima de tudo, carrego comigo um profundo senso de responsabilidade pelo bem-estar das crianças, dos educadores e das famílias que compõem essa comunidade.
Não faz muito tempo que comecei a refletir mais profundamente sobre o que significa realmente liderar uma iniciativa social. Em um mundo onde as individualidades se colocam cada vez mais no centro, a preocupação com o coletivo, a escuta e a empatia parecem estar ficando de lado. E, no entanto, é justamente nesse cenário que as iniciativas sociais se destacam como uma força necessária para que a sociedade prospere.
Recentemente, percebi que essa experiência de liderança escolar é, na verdade, um espelho de um paradoxo maior: como conciliar o desejo individual com as necessidades do outro? O que significa agir a partir do meu âmago e, ao mesmo tempo, estar completamente voltada para o bem-estar alheio?
O verdadeiro desafio reside em buscarmos o meio do caminho, onde o “eu” possa se manifestar em harmonia com o “eu do outro”. É nesse contexto que as iniciativas sociais surgem como uma força contrária, um movimento que busca resgatar a importância da coletividade, de tentar se colocar na realidade do outro e de desenvolver o altruísmo.
Crianças no projeto Moinho Cultural | Divulgação Meu, seu, nosso
A Vida em Equilíbrio
Em minha jornada na escola, tenho me deparado constantemente com a necessidade de equilibrar esses dois pólos. Por um lado, há momentos em que preciso insistir no que acredito ser o melhor para o todo, mesmo que isso signifique enfrentar resistências. Por outro lado, há momentos em que é necessário renunciar a algo pessoal, reconhecer privilégios, ampliar o olhar para outros mundos e realidades, talvez muito diferentes dos meus.
Qual é a linha tênue entre escolher estar com minha família, me dedicar ao meu trabalho, ter um momento só meu e a minha dedicação ao bem comum, a uma atividade voluntária coletiva?
Muitas das iniciativas que temos plantado na escola da minha filha serão colhidas daqui a alguns anos. Provavelmente, quando ela mesma, já tiver saído desta escola. Ou seja, eu, ela e minha família não colheremos esse resultado, esse benefício, diretamente. Mas isso não faz parte de construir um futuro que a gente deseja? Sigo acreditando que sim!
Marek Studzinski | UNSPLASH
Ao mesmo tempo, esse equilíbrio não é fácil e, muitas vezes, me questiono: como encontrar a verdadeira liberdade nesse contexto?
A verdadeira liberdade não reside em seguir apenas nossos próprios desejos internos, nem em nos submeter cegamente às regras e expectativas impostas pelo mundo externo. Em iniciativas sociais, essas duas formas de “não-liberdade” se entrelaçam e se transformam em uma liberdade mais profunda. Nesses momentos, nossas ações são movidas tanto por nossas convicções internas quanto pelas demandas externas. No entanto, a liberdade é um valor que não nos é simplesmente concedido; ela precisa ser conquistada, exigindo que superemos desafios e resistências ao longo do caminho, e estejamos conscientes do impacto das nossas ações, não apenas em nós mesmos, mas em todos ao nosso redor.
O Potencial Transformador das Iniciativas Sociais
Se olharmos mais de perto, as iniciativas sociais podem ser vistas como portais de transformação — tanto para quem as lidera quanto para aqueles que delas participam. Assim como em qualquer jornada de desenvolvimento, há altos e baixos, desafios e recompensas. Mas, acima de tudo, há um convite constante à autodescoberta e à reavaliação de valores e prioridades.
Recentemente, ao assistir à série documental “Meu, Seu, Nosso” sobre a cultura da doação no Brasil, exibida na plataforma Aquarius, fui profundamente tocada por essa reflexão. A série aborda como as iniciativas sociais, ao serem impulsionadas pela vontade individual e pelo zelo pelo outro, têm o poder de transformar comunidades e, quem sabe, até mesmo a sociedade como um todo. Além de contar as experiências e biografias de diversos líderes de iniciativas sociais, a série também provoca reflexões profundas sobre o nosso papel no coletivo. Embora a minha experiência na gestão da escola associativa seja significativa para mim e para a comunidade que servimos, reconheço que o impacto e o envolvimento dos personagens retratados na série documental são de uma magnitude muito maior. As histórias contadas ali revelam um compromisso e uma escala de transformação social que vão muito além da minha realidade cotidiana e que me inspiraram a seguir meu caminho.
Ana Paula Mucunã | Divulgação Meu, seu, nosso
Um Convite à Reflexão e Ação
Ninguém precisa enfrentar esses desafios sozinho. O conhecimento e a troca de experiências são fundamentais. Quando compartilhamos nossas vivências, quando conversamos abertamente sobre os dilemas e as conquistas, quando conhecemos os desafios vivenciados pelos outros, quando honramos aqueles que já passaram por experiências antes de nós, criamos uma rede de apoio que fortalece não apenas as nossas ações, mas toda a comunidade de uma iniciativa social, que também pode ser um reflexo da sociedade que queremos construir.
Lex Bos, em seu livro “Confiança, Doação e Gratidão”, convida-nos a uma profunda reflexão sobre os pilares que sustentam as relações humanas e a construção de uma sociedade mais justa e harmoniosa. O autor revela a importância da confiança, da doação e da gratidão como forças construtivas na vida social.
Bos nos mostra como a confiança é o alicerce de todas as relações humanas. Ao confiarmos nos outros, abrimos espaço para a cooperação, a colaboração e o desenvolvimento de vínculos profundos. A doação, por sua vez, é o ato de dar de si sem esperar nada em troca, fortalecendo os laços sociais e promovendo o bem-estar coletivo. Por fim, a gratidão é a expressão da valorização do que recebemos, seja material ou imaterial, e contribui para a construção de relações mais positivas e duradouras.
O autor, com uma análise singela e competente, aborda temas complexos como a ética, a moral e os valores humanos, relacionando-os com a dinâmica das relações interpessoais. A obra não se limita a uma mera descrição teórica desses conceitos, mas apresenta exemplos práticos e reflexões que nos convidam a uma profunda autoanálise e a uma transformação pessoal.
Então, se você se encontra, assim como eu, na liderança de uma iniciativa social ou em qualquer posição de influência em sua comunidade, o que acha de refletir sobre o impacto das suas ações? Como podemos, juntos, cultivar uma sociedade onde o individual e o coletivo caminhem lado a lado?
Que a gente se permita acolher essa jornada com conhecimento, empatia e, acima de tudo, com a disposição de fazer a diferença.
Neste texto e para ir além:




Carla Latini é movida pelas histórias que a vida conta e fascinada pela jornada de cada indivíduo. Psicóloga, mãe de dois e co-criadora do Mercúrio Antroposofia (@mercurioantroposofia), encontra sentido e inspiração nas narrativas que cruzam seu caminho, unindo experiências pessoais, profissionais e familiares em sua busca por desenvolvimento humano.
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